14 de novembro de 2016
Meu querido filho Tomás,
Esta semana foi confusa e cheia dos teus porquês de rapaz curioso e sensível. Tão poucos os dias para o tanto que no teu mundo interno como externo parece ter mudado.
Aprendeste a abotoar os botões das tuas camisas e construíste um foguetão, um avião e um submarino amarelo em lego, tudo no mesmo dia e sozinho. Ficámos surpreendidos pela evolução dos bonecos e das motas verdes que saem das tuas mãos cada vez mais bonitas. Num dos jantares disseste que ainda não tinhas a certeza se querias ser astronauta como o Chris Hadfield, um médico na Síria com uma mota verde com sidecar (tens razão quando dizes que uma mota com um sidecar é capaz de ser mais rápida a levar um doente do que uma ambulância num país em guerra) ou um stormtrooper (que dizes “trometropers”) do Star Wars porque gostas muito das máscaras brancas (até porque, aqui entre nós, do pouco que viste achas o Star Wars muito violento e preferes não ver).
Também foi esta semana que entraste devagarinho no meu quarto de madrugada para me dizeres com a tua voz meiga e preocupada que o Trump tinha ganho as eleições. Não sem antes me anunciares que me trazias uma notícia que me ia fazer ficar triste (um dia saberás que até chorei). Umas horas antes estavas sentado ao meu colo a ver as notícias e a tentar perceber porque é que a mãe estava tão entusiasmada com as eleições americanas. Juntaste a tua voz ao coro da Carmo e da mãe que repetidamente diziam Clinton em tom de festa. Ainda era cedo nessa altura. A mana e tu foram para a cama excecionalmente fora de horas, mas ainda felizes por verem os pais felizes.
No dia seguinte e com sensibilidade de rapaz esperto e meigo que és, a primeira coisa que disseste à tua professora quando chegaste à escola foi que era um dia triste. “O Trump tinha ganho as eleições e o Trump não gosta de mulheres, então não devia ser ele o presidente”, foram as tuas palavras. Nesse mesmo dia, disseste ainda ao Nadir, o auxiliar e treinador da equipa de futebol da escola, que a mãe estava muito chateada com o Trump porque “ele é que ganhou para ser presidente da América, mas como ele acha que as mulheres são burras e isso é um pouco …” – Segundo a descrição do Nadir, levantaste o lábio do lado esquerdo e franziste a testa para acentuares a tua cara de desaprovação. Ficaste uns segundos em silêncio e depois disseste ao Nadir que “a minha mãe é muito esperta e bonita e eu gosto muito dela e é por isso que eu também não gosto do Trump.” O raciocínio foi bem feito: se gostas tanto da mãe e a mãe é mulher, como é que alguém pode não gostar de mulheres (e ainda por cima tornar-se presidente da maior potência do mundo)?
Desde então já me perguntaste algumas vezes porque é que foi ele que ganhou e se ele sempre ia construir o muro na fronteira com o México. Sinto que as respostas que te dou não são suficientes. Tentar explicar-te que a democracia tem muito de bom, mas que às vezes dá nisto, não é suficiente. Ou dizer-te que também gostava de perceber a escolha de mais de metade dos americanos (e poderia dizer-te que percebo racionalmente o voto do contra, mas que emocionalmente me entristece que tanta gente se identifique com o discurso demagogo, misantropo, misógino e boçal do próximo Presidente dos EUA e, mais revoltante ainda, que acham que ele seja um mal menor comparado com Hillary Clinton).
A vitória de Trump, como a de outros homens como ele, reflete um mal estar na civilização e as tuas dúvidas são as dúvidas de todos os que acreditam num mundo mais igualitário, mais justo e empático. A tua vontade em quereres perceber porquê é a mesma vontade que partilham os homens bons que se interrogam sobre o espírito dos tempos. Sim, meu filho, mais do que uma reflexão política a época em que vivemos está sedenta de uma reflexão ontológica, dessas que tentam alcançar a profundidade dos problemas e dos descontentamentos. Que tipo de homens devemos ser? Que tipo de homens precisa o mundo? Que responsabilidade temos enquanto sociedade em educarmos homens melhores?
No sábado de manhã, nesse dia em que completaste quatro anos e meio de vida, celebrámos também a vida de Leonard Cohen. Estavas ainda no teu quarto quando o pai e eu começamos a dançar a “Take this Waltz” interpretado pelo músico montrealense (com a letra traduzida do espanhol de um poema de outro homem de amores, Federico Garcia Lorca). Os teus olhos curiosos ficaram a admirar os pais nessa valsa, que é também uma dança de igualdade e de respeito, durante uns segundos. Ainda te agarraste aos nossos pés para que te pegássemos ao colo, mas dissemos-te que a mãe o pai também precisam de dançar só os dois de vez em quando. Depois, com a tua delicadeza e charme, dirigiste-te à mana e deste-lhe a mão para dançarem. São esses pequenos gestos que contam verdadeiramente, meu filho. Porque em vez de uma birra – que seria até compreensível, sublimaste o ciúme e resolveste o teu conflito da forma mais bonita. Já tarde no dia, perguntaste-me porque é que o Leonard Cohen tinha morrido. A morte que tantas perguntas te tem suscitado. Ainda antes de te responder disseste que sabias em parte porquê. “Porque assim é o ciclo da vida, tudo o que nasce, morre”, dito quase como uma ladainha repetida para ajudar a perceber com palavras coisas tão complexas e emoções tão primordiais.
Voltaste a lembrar-me que só queres morrer de velhinho. E eu prometi-te que sim, no que depender de mim, será só quando te sentires preparado para deixar a vida, como o Leonard Cohen. E, porque seria prematuro explicar-te agora, um dia irei contar-te a coincidência ou talvez não, da morte desse poeta que era músico e que morreu a tempo de não assistir à vitória de tudo aquilo que desprezava. Como se a morte de um homem bom numa segunda-feira à noite, tivesse aberto as portas à vitória de um homem mau no dia seguinte. Para alguém tão espiritual e que passou a vida toda à procura de um sentido para tantas das tuas perguntas como Leonard Cohen, não sei se não terá sido simbólico o dia em que escolheu para morrer. Era homem para isso.
Ontem à noite, e já depois de termos falado rapidamente (e através de uma história contada de forma a que os teus quatro anos te permitissem tolerar) do que aconteceu no Bataclan há um ano atrás – e me perguntares se esses foram os terroristas que também não gostam da Malala só porque ela acredita que as meninas devem ter o mesmo direito a estudar do que os meninos, perguntas-te ao pai se havia infinitos malvados no mundo. O pai explicou-te que não e lembrou-te de todos os homens bons que conheces. Estava a deitar o mano e por isso não ouvi a resposta, mas sei que perguntaste ao homem certo. Porque também o pai é um desses homens bons que escreve poesia e acredita na igualdade.
Foi uma semana difícil, meu filho. Às vezes pergunto-me se não será cedo demais para te preocupares já com tantas coisas complicadas de perceber. Saber que tantos adultos se preocupam menos do que tu. É por isso que hoje, quando vieres da escola, te vou contar a história de José do Egito, interpretador de sonhos, filho de Jacob, que, maltratado e desprezado pelos próprios irmãos, se valeu da sua bondade, aquela que todos carregamos em potencial, para os perdoar. Porque não podemos mudar o mundo sozinhos, sabes, mas podemos e devemos partilhar a história desses Josés (que é também o nome do teu bisavó, que tinha muitas qualidade de homem bom), desses Leonards, poetas do amor, das mulheres, da profundidade, das coisas verdadeiramente essenciais, desses exemplos de humanidade que o mundo tão desesperadamente precisa.
Quando fores um pouco mais crescido, meu filho Tomás, e tenhas escolhido tu seres um astronauta, um médico na Síria ou tenhas outra profissão qualquer, espero que nunca desistas de ser também tu um homem bom. Lembra-te que o mano Xavier, de quem tanto gostas, verá em ti o exemplo a seguir, e depois serão os teus filhos. Por isso é que, por mais obstáculos que encontres, não podes desistir. E espero que a tua decepção com esses homens que chamas de malvados por não gostarem de mulheres (na verdade normalmente não gostam mesmo é de ninguém a não ser deles próprios, mas isso ainda é cedo para perceberes), te dê coragem para influenciar os homens à tua volta. Porque sei que perceberás que a luta diária das mulheres para se fazerem respeitar só valerá completamente a pena quando se mudar a cultura dos homens. Quando todos os homens souberem como tu que as valsas só se dançam a dois. Talvez assim o gesto espontâneo de estenderes a mão à tua irmã se torne contagioso e todos os homens dirão “if you want a partner, take my hand”. E mais homens bons haverão, desses “I’m your man”, que o poeta Leonard Cohen tão bem cantou.
Da tua mãe.
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal: 80 dias
Nas notícias por aqui: A saga Trump na presidência continua a dominar as notícias por aqui.
Sabia que por cá… tem havido homenagens quase diárias, incluindo da comunidade portuguesa, a Leonard Cohen, o músico nascido em Montreal?
Um número surpreendente: fontes oficiais confirmaram que no momento das eleições americanas 200 mil pessoas, sendo que metade eram americanos, consultaram o site da imigração Canadá.