Iou-sa nómi sãm Filipa Araújo. Iou ta vivo na Macau. Parece-lhe estranho mas ao mesmo tempo familiar? Faz sentido. Dá-se pelo nome de Patuá, crioulo de base portuguesa com “mistura chinesa”, e de tantos outros lugares. Para alguns é conhecido como “maquista”, a língua dos macaenses.
Perdoem-me a ingenuidade dos 30 anos, mas viver em Macau será sempre uma descoberta, uma aventura com muitos sentimentos à mistura. Esta corda bamba entre o amo-te e o odeio-te, do fica comigo para sempre ou nunca mais te quero ver.
Macau não é igual à China, não é igual a Portugal, nem a qualquer outro lugar. Macau é uma cultura muito própria, muito dona de si mesma, deixando marcas em todos nós. Desde a gastronomia aos costumes, a identidade do macaense destaca-se só por existir.
Hoje falo-vos da língua de quem é desta terra, para isso, evitando pontapés na gramática e outros erros dramáticos, pedi a um amigo, e cara muito conhecida da praça pública, para tentar explicar aos leitores da VISÃO afinal o que é isto do Patuá, o dialecto de Macau.
Conta Miguel de Senna Fernandes, presidente da Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (APIM), que quem explora este crioulo tem a perfeita noção daquela que foi a viagem mais conhecida dos nossos portugueses, os descobrimentos. É que o Patuá (ainda na versão mais arcaica) abraça elementos do kristáng, do espanhol e tem algumas expressões de origem africana. “Os portugueses passaram por várias localidades no século XVI e XVII, e naturalmente, não se pode estar alheio a que tudo isto, em termos linguísticos, tenha resultados surpreendentes”.
A origem, essa fica para os estudiosos, mas a necessidade de comunicação trouxe-nos até aqui, a esta tão bela e sonora “deturpação da língua base”.
Uma questão de estatuto
Voltando no tempo, não escondamos a verdade. Falar Patuá não era visto com bons olhos. E quem por lá viveu sabe bem as repreensões que ouvia por não saber falar “bom português”. Em boa verdade, conta-nos Miguel, era uma questão de estatuto.
“Na época do apogeu o Patuá – se é que podemos dizer isso – falava-se português (em Macau) e saber falar correctamente era uma questão do estatuto. Quem dominava politicamente Macau era Portugal, o português era oficialidade e socialmente não se tolerava nada que não fosse o português”, recorda.
De forma natural, o Patuá foi-se escondendo nos núcleos familiares ou de amigos muito próximos. Competia às mulheres, por assumirem funções de gestão da casa e dos filhos, manter a sobrevivência este crioulo. E se ainda hoje o temos é graças a essas mães, tias e avós que entre si falavam Patuá e, mais do que isso, ensinavam aos seus descendentes. Aqueles que hoje têm como missão assegurar a continuidade do Patuá, que está, como alertou a UNESCO, “no último patamar antes da língua se extinguir”.
De casa para o teatro
Se de forma mais ou menos natural o Patuá foi-se escondendo com o Estado Novo, o estrangulamento da “língua mal falada” acentuou-se ainda mais. Tudo estava relacionado com a ideia de império, da metrópole Lisboa e embora estivesse escrito que se devia respeitar os regionalismos, na prática isso não acontecia.
“Os difusores da língua portuguesa, os professores que vinham da metrópole, tinham por missão ensinar o português tal como se falava em Portugal, e isto também aconteceu nas outras colónias, mas nessas, o seu crioulo tinha raízes muito mais fortes e sólidas, que sustentavam a sua utilidade social. Macau era diferente, éramos poucos”, recorda.
A ideia de “português mal falado” ganha, então, uma conotação ainda mais forte, passando a marginalizar quem o falava. Quem falasse Patuá mostrava-se como iliterado, sem cultura. “O reles que fala mal”. Com o passar dos anos, lembra Miguel de Senna Fernandes, os próprios falantes começaram a assumir essa função inútil do seu crioulo, aceitando que de nada serviria saber falar a língua dos macaenses.
Diz o ditado que no Carnaval ninguém leva a mal, e, de facto, foi esta a janela de salvação para o dialecto. Sendo uma época de permissividade, tudo se podia dizer, principalmente, tudo se podia escarnecer. E não há boa cantiga de escárnio sem uma linguagem corriqueira.
“Apesar das pessoas continuarem a ter vergonha de falar Patuá, nos títulos mais oficiais nem sequer existia, passou a ser utilizado sempre que se queria fazer chacota. E de que maneira”, brinca. E qual é o melhor sítio para escarnecer sem ninguém levar a mal? No teatro, pois está claro.
E assim, muitos anos depois, o Patuá aqui está como uma língua de espectáculo, principalmente devido às diversas iniciativas do grupo Dóci Papiaçám de Macau, que anualmente organiza uma peça de teatro (a meio do ano) onde se fala de coisas sérias a brincar. A ideia de sátira está ali, naquelas quase duas horas de espectáculo. De sala sempre cheia, a plateia diverte-se e ri às gargalhadas. E a culpa? É do patuá, o dialecto do “está tudo bem”, do “chinelo no pé”, da “conversa com o amigo”, da música para os nossos ouvidos. A língua feliz. A língua do povo.
*Aquele que fala muito e não diz nada de jeito.
Letra escrita por Miguel de Senna Fernandes, em 2003, para a melodia “Rainbow Connection”, interpretada pelo grupo Dóci Papiaçam de Macau.
BOM-SONO QUIRUBIM
Bom-sono quirubim, vêm-ca naná
Durmí ‘nga nôti di paz
Dia chegâ na fim, atê manhâm
Tudo sâm dessâ pa trás.
Aguâ na mundo di sonho istrelado
Luz encantado seguí
Nancassâ medo
Sunhâ bem fêto
Vôs tem iou perto aqui
Sonho medónho, sonho chistoso,
Sonho co anjo risonho
Séza bondádi, séza maldádi
Sonho sâm também verdádi
Aguâ na mundo di sonho brilhanti
Luz-diamanti seguí
Nancassá medo
Sonhâ bem-fêto
Vôs tem iou perto aqui
Vôs nunca-bom acordâ,
Quelóra sonho sâ grándi !
Visto de fora
Dias sem ir a Portugal: Sessenta e quatro (64)
Nas notícias por aqui: António Costa, primeiro-ministro de Portugal, esteve por cá., e também o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues. Foram reforçados os laços, feitas promessas de cooperação, visitas a escolas, almoços e jantares e, como sempre, está tudo bem.
Sabia que por cá… Determina a Lei Básica que a língua ofical é o chinês e o português. Mas o que por aqui se fala é o dialecto cantonês/cantonense, bem diferente do mandarim. Uma dessas diferenças é o número de tons, visto que a primeira tem nove e a segunda quatro. Talvez por isso se defenda que o cantonês é mais difícil de aprender.
Um número surpreendente: Só este ano o calendário contou com 28 feriados e tolerâncias de ponto. Óptimo para escapadelas aqui à volta.