Quarenta fadistas em dez palcos em Alfama. Nunca se viu nada assim. O fado que todas as noites se celebra em tascas e restaurantes da cidade de Lisboa, vai desta vez subir a palcos improvisados, fora das vielas, entre as praças de Alfama e alguns locais históricos, como A Igreja de São Miguel ou o Grupo Sportivo Adicense. Tudo isto acontece dias 20 e 21. Uma ideia da produtora Música do Coração, que importa um conceito da música pop-rock para o fado, assumindo-o no slogan ‘fado Rocks’. É a confirmação estridente de uma tendência da nova geração do fado (uma geração de estrelas), em que toda a iconografia do pop é transportada para o universo fadista com ganhos e perdas. Tal é assumido com desconfiança pelos tradicionalistas, que sabem que nada supera o fado de tascas e restaurantes, em versão acústica, sem microfone, na dose certa, acompanhado por um copo de vinho tinto. Mas também é verdade que uma coisa não implica a outra e o fado enquanto estrela de rock não aniquilou aqueloutro, que ainda se vive nos bairros.
A programação deste primeiro Caixa Alfama é equilibrada. Procura juntar exemplos de diferentes realidades fadistas. E, como não poderia deixar de ser, são mais os ausentes do que os presentes. O que nos leva a concluir com estranheza: 40 nomes não é assim tanto. Mas encontra-se um balanço entre figuras mais mediáticas e fadistas populares, veteranos e principiantes (passando pelas gerações intermédias), tradicionalistas e novas vagas. Assim encontramos no mesmo cartaz nomes como Camané, Ana Moura, Maria da Fé, Rodrigo, Jorge Fernando, Fábia Rebordão, António Zambujo, Kiko e Gisela João.
O Caixa Alfama, claro, está longe de resumir as várias tendências e atitudes perante o fado. Faltam personagens centrais que, de uma ou de outra forma, têm marcado o fado nos últimos anos. A começar por Carlos do Carmo e Mariza, que foram os ‘embaixadores’ na Unesco. Mas também Mísia, Paulo Bragança, Mafalda Arnauth, Pedro Moutinho, Maria Ana Bobone, Joana Amendoeira, Katia Guerreiro… E se formos para os mais antigos, de Beatriz da Conceição a Celeste Rodrigues, a lista não tem fim. E apesar de estar presente uma visão do fado tão peculiar como a de António Zambujo, estão ausentes alguns dos mais fascinantes projetos de fusão dos últimos anos, com destaque para A Naifa. Obviamente que o Caixa Alfama não é um compêndio nem uma súmula, nem sequer tem qualquer obrigação de indicar caminhos ou fazer resumos. É apenas um festival que, se tudo correr bem, terá uma nova edição em 2014 com outros nomes.
Património
Quando elevaram o Centro Histórico de Évora a Património da Humanidade obrigaram a autarquia ao compromisso de ter alguns cuidados. Manter as casas preservadas, evitar novas construções, retirar as antenas dos telhados. A UNESCO entregou o título não só no sentido de garantir a importância histórica do local, mas também com a ideia de o preservar na sua antiguidade. Nos casos de Património imaterial o mesmo não se verifica necessariamente. Quando se deu o estatuto à Nona Sinfonia de Beethoven (porquê a nona e não todas as outras?) não havia o perigo desta se extinguir. O mesmo acontece com o fado (e o flamenco). A canção de Lisboa foi elevada a Património da Humanidade em momento de enorme expansão mundial, com fadistas a atuar nas mais importantes salas do globo, em terras distantes. Não há, portanto, qualquer risco de extinção. Poderá haver de degradação?
Faça-se, então, a pergunta: qual é o fado que a UNESCO quer preservar? Sabemos que a zona patrimonial de Évora fica dentro das muralhas. Mas quais são as muralhas do fado? Ou, por outras palavras, o que é o fado? Aníbal de Nazaré respondeu num dos fados popularizados por Amália Rodrigues: “Almas vencidas/ Noites perdidas/ Sombras bizarras/ Na Mouraria/ Canta um rufia/ Choram guitarras/ Amor ciúme/ Cinzas e lume/ Dor e pecado/ Tudo isto existe/ Tudo isto é triste/ Tudo isto é fado”. Apesar de tudo, subjetivo e incompleto.
Poder-se-ia suspeitar que o fado que interessava à UNESCO preservar era aquele inscrito na tradição, o vasto conjunto de melodias catalogadas por José Manuel Osório. A escolha para ‘embaixadores’ de Carlos do Carmo e Mariza, fadistas que não se confinam a uma perspetiva tradicional, afastou desde logo essa ideia. Mas mesmo que assim não fosse, nada impediria que o dinamismo de uma música viva e saudável trouxesse novos caminhos e conceitos, que são mais do que novas vozes. O fado não se deixa fechar em frascos de formol num museu. Assim, o novo ‘estatuto’ do fado, mais do que exigir a preservação de um género musical ou de um cancioneiro, serve como reconhecimento da sua pertinência global e funciona, na prática, como uma ajuda decisiva à sua crescente expansão.
O ‘progresso’ nos último anos tem sido disso exemplo. Foi há quase dez anos que publiquei o livro O Futuro da Saudade, O Novo Fado e os Novos Fadista, essencialmente um livro de divulgação em que tentei sistematizar e analisar um fenómeno que na altura ficou conhecido como o novo fado. Identifiquei uma série de características, em grande parte herdadas de Amália, e primeiramente recuperadas por Mísia e Paulo Bragança, comuns a grande parte da nova geração. Encontrando-se nesse conjunto de tendências um novo fado, de quem nem todos os ‘novos fadistas’ partilham.
A geração abordada amadureceu e ganhou consistência. Alguns desenvolveram a sua linguagem, outros quase desapareceram e surgiram novos nomes e novas ideias. O fado não esmoreceu. Mas olhando agora em retrospetiva para a última década, verifica-se que, em geral, mantêm-se as linhas fortes ali indicadas. E o que então se questionava se seria uma ‘moda’, revelou-se, tal como havia afirmado, um fenómeno nada passageiro e crescente.