Editou o primeiro disco em 1963, gravou até hoje 240 temas, dos quais dezenas deles foram sucessos ou mesmo grandes sucessos, daqueles que toda a gente conhece e cujo refrão sabe cantar, deu muitas centenas ou milhares de concertos por todo Portugal e um pouco por todo o mundo, sobretudo onde há portugueses – e, de par com esta muito intensa vida artística, nunca deixou de ser um cidadão solidário e interveniente (ainda nas últimas eleições autárquicas foi o mandatário e participou na campanha da candidatura de António Costa, reeleito, com maioria absoluta, presidente da Câmara de Lisboa). Nascido na Bica, em Lisboa, filho de mãe fadista e de pai com ela dono de uma conhecida casa de fados, esse sempre foi o seu meio, mas muito para além dele se projetou, inclusive ao valorizar sempre a qualidade dos textos, ao interpretar muitos bons poetas, com uma dicção e estilo únicos. Agora, aos 74 anos, mantendo uma extraordinária qualidade de voz e interpretativa, para assinalar os seus 50 anos de carreira vai ser lançado o disco Duetos, que é posto à venda dia 4 de novembro, com 11 vozes, que cantam designadamente versos dos poetas que aqui escrevem sobre ele (com exceção de Alegre). E nos dias 30 de novembro e 1 de dezembro, Carlos do Carmo dá dois espetáculos no CCB: era para ser só um, mas, quase sem publicidade, a lotação esgotou-se e foi marcado um segundo. “Mas não poderei fazer um terceiro”, diz-nos o artista, a concluir uma conversa de três horas, sobre (quase) tudo, na confortável sala da sua casa de Lisboa, com quadros nas paredes, sem grandes fotos ou “troféus” a lembrar a sua rara vida artística
JL: Ao longo destes 50 anos já deu inúmeras entrevistas. Mas ninguém conhece tão bem o Carlos do Carmo como o próprio Carlos do Carmo. Então, se tivesse que o entrevistar, qual era a primeira pergunta que lhe faria? Carlos do Carmo: (pensa) Seria uma pergunta aparentemente deslocada dos tempos que vivemos: “Por que é que não te cansas da tua utopia?”
Não seria uma pergunta que tivesse a ver diretamente com o artista, mas antes com o cidadão. Mas o artista e o cidadão não são um só? Isto está tudo ligado. Que utopia é essa que persegue? É uma coisa muito simples: o homem, com tudo o que tem ao seu alcance, pôr o mundo a funcionar bem, com justiça. É uma coisa primária e… louca.
Como tenta contribuir para a alcançar? Com a minha intervenção cívica, faço parte de muitos movimentos. Mas também através do reportório, 98% dos meus fados são a puxar para cima. Gosto da vida. Ter estado às portas da morte, há quase 14 anos, fez com que mudasse a minha filosofia. Gosto das pessoas, não vivo amargo e azedo. A minha utopia passa pelo contacto com cada um. Individualmente as pessoas são extraordinárias. Depois, não sei porquê, juntam-se e elegem este governo e o Cavaco Silva. Arrependem-se, mas entretanto tramamo-nos.
O artista e o cidadão estiveram em si sempre ligados, ou essa ligação foi-se acentuando com o tempo? Acentuou-se. Já cantei nos cinco continentes. A vida artística deume uma experiência e visão do mundo que aproximaram o artista do cidadão, transformando-os numa peça só.
Deu-lhe uma visão planetária… … e deu-me orgulho de ser português. Fizemos, nós portugueses, coisas muito interessantes. Depois entramos nesta espécie de atrofia até chegarmos aqui, a ser pequeninos, pobrezinhos, morar longe e dizer mal uns dos outros. Esse lado é que não acompanho nem nunca acompanhei. Lá fora vi a grandeza de Portugal.
O José Rodrigues Miguéis dizia: “O universal está no meu quintal, a questão é saber cavar”. Esta ideia pode ser aplicada ao fado? Pode. Descobri, aliás, com o Carlos Saura, que não há fado, há fados. Cada um faz o seu. Na história do fado do século XX, ficaram apenas meia dúzia de fadistas, e cada um fez o fado à sua maneira, cada um no seu quintal.
Quanto mais particular for, quanto melhor exprimir a realidade e especificidade de um povo, mais universal se pode tornar a arte? Sim. Lembro-me de um concerto que dei em Helsínquia, nos anos 80. No final, um finlandês veio cumprimentar-me ao camarim e fez-me uma recomendação: “Tratem o fado com muito cuidado, porque vem aí a Comunidade Económica Europeia e se não o salvaguardam ficam sem esse belo património”. Cada vez que atuo num palco lá fora sinto uma grande responsabilidade, que levo até às últimas consequências.
Deve ser tocante… Muito. Por exemplo, ir cantarà Costa do Marfim,para uma plateia de mil pessoas, a ouvir o fado pela primeira vez… É um desafio extraordinário. Vou explicando, devagar, o fado e o país, contando histórias. Tentando não encharcar a plateia de fados tristes, se não torna-se insuportável.
O José Gomes Ferreira, numa das suas crónicas, chamou às casas de fado “casas de sofrer”… Provavelmente com razão. Na tríade da raiz do fado fazem parte o Menor, o Mouraria e o Corrido. Porque cantar só ou sobretudo temas à volta do fado menor? Faz-me impressão ver uma rapariga nova, encostada a uma parede, a cantar fados tristes. Aquilo não bate certo, ela devia cantar sobre a juventude, a alegria de viver, pedir a alguém que lhe escrevesse letras sobre os dias que correm, a tecnologia, já que ela existe. Eu é que ainda sou do tempo em que, nas esplanadas do Algarve, cantávamos para cornetas.
A VIDA As mães costumam cantar aos filhos, para os adormecer. A sua mãe cantava-lhe fados?… Coitadinha, ela tinha lá tempo! Era uma altura muito difícil. Nasci em 1939. O meu pai era livreiro e atravessou um período muito duro. Depois, eles trabalhavam à noite.
Quando foi a primeira vez que se lembra de a ouvir cantar? A época era tão difícil, repito, que a minha mãe grávida de oito meses ainda cantava todas as noites. Terei ouvido o fado pela primeira vez dentro da sua barriga… De resto, não havia tempo. Mas lembro-me das aulas de dicção que o meu pai lhe dava. Ensinava-a a dividir os versos. Ela tinha uma dicção boa mas ele, que era um homem de letras, aperfeiçoou-a.