Já ficou desempregado e já o sentiu: a vida a desmoronar-se. Não é o fim do mundo, garante, mas talvez ande lá perto. Sobretudo numa sociedade, como a nossa, onde tudo é pintado com as cores do dinheiro e o trabalho define quem somos. E foi isso que mais o interessou no momento que estamos a viver: não a crise das dívidas soberanas, nem os programas de ajustamento financeiro, nem as questiúnculas políticas. Antes a história de uma pessoa comum, de uma pessoa como todos nós que à crise do país acrescenta a sua crise. Para David Machado, a atualidade é o pano de fundo a partir da qual tece o drama de Daniel. E do mundo que o rodeia.
Otimista por natureza, Daniel tem um plano para salvar a sua vida. Aliás, começou a escrevê-lo ainda adolescente, antecipando triunfos e momentos de glória. Só que esse caderno preto não previu tudo. Não previu que um amigo ia ficar fechado 12 anos em casa ou que outro seria preso por assaltar uma estação de serviço. Ou que ele próprio ficaria desempregado num ápice ou que os seus filhos, com a sua mulher, passariam a viver a mais de 400 quilómetros de distância. O seu projeto não contemplou um plano de emergência e agora terá de fazer frente às emergências da vida real.
Com humor e diálogos admiráveis, David Machado conta-nos a aventura de um herói involuntário, às voltas com as contas que tem de pagar e os sonhos que se vê obrigado a apagar da sua cabeça. Tudo na primeira pessoa, num ritmo alucinante. A voz de Daniel guia-nos pela história, com os seus tiques de linguagem e pensamentos em espiral.
No entanto, Índice Médio de Felicidade, que chega às livrarias na próxima semana, com a chancela da D. Quixote (256 pp, 14, 90 euros), é acima de tudo uma incursão nos territórios da economia da felicidade, como hoje os estudiosos designam o tema, e na ideia de felicidade pública, aquela que defende que o mundo só faz sentido se formos todos felizes ao mesmo tempo. Sem desequilíbrios.
Nascido em 1978, David Machado estreou-se com o livro infantil A Noite dos Animais Inventados, distinguido com o Prémio Branquinho da Fonseca, a que se seguiram O Tubarão na Banheira ou A Mala Assombrada. Publicou o primeiro romance, O Fabuloso Teatro do Gigante, em 2006, e o segundo, Deixem Falar as Pedras, em 2011, com um volume de contos, Histórias Possíveis, pelo meio. Livros alimentados com os temas de eleição (imaginação, memória, felicidade) e pelo desejo de contar uma boa história. “Não quero impingir nada ao leitor, nem teorias, nem morais, nem dogmas”. afirma. “A literatura, para mim, é um texto que, não dando respostas, levanta questões”. Como Índice Médio de Felicidade. Um livro feliz.
JL: Este livro é indissociável da crise que estamos a viver?
David Machado: Gostava de separar os dois assuntos, mas sei que é difícil. Nunca quis falar sobre a crise atual. Aliás, a palavra crise não é referida uma única vez, embora seja óbvio que as personagens a estão a viver. O meu desejo sempre foi falar de um homem em crise.
Prefere as crises que a crise provoca?
Sim. O mais interessante, para mim, é perceber a crise pessoal que este homem e as pessoas à sua volta sentem por causa das circunstâncias em que vivem.
Mas, enquanto escritor, é permeável ao que se passa à sua volta?
Nem por isso. Pensei em várias hipóteses. Esta história podia passar-se na Ditadura ou na Idade Média, períodos também muito difíceis. Podia até ter escrito sobre um homem que descobre que tem uma doença grave para tentar perceber o que ele pensaria sobre o futuro e a felicidade. A atualidade permite ao leitor identificar-se imediatamente com a história e, assim, saltar logo para as questões mais importantes que o livro levanta.
A atualidade trouxe algo de novo à sua escrita?
Mais atenção ao mundo e à linguagem de hoje. Como quis usar uma voz contemporânea, tive de encontrar um equilíbrio entre o que é banal e o que pode ser transformado em qualquer coisa literária, mais profunda e com mais camadas.
Fez muita pesquisa? Candidatou-se a empregos, preencheu formulários?
Vi histórias na internet e contaram-me outras. Pesquisei sobre a felicidade, vi vídeos, sobretudo nas TED Talks. Mas nada de especial.
O VALOR DO TRABALHO
Apesar de trabalharmos mais de metade das nossas vidas – e do nosso dia – o mundo empresarial não é um tema literário por excelência.
É pouco explorado, de facto. Mas há exceções. Mário Benedetti escreveu diversos contos passados no mundo empresarial. E tem um romance muito bom, A Trégua, que decorre num escritório. As relações que se criam no trabalho são estranhas. Passa-se mais tempo no escritório do que com a família e nem sempre se tem empatia com quem se trabalha. Depois é preciso encontrar temas de conversa, estabelecer relações, obedecer a hierarquias. Isto até pode ser interessante. Mas verdadeiramente fascinante é a questão do desemprego, porque leva às emoções e aos desejos mais profundos do ser humano. O desempregado é alguém que põe tudo em causa.
O narrador do romance, Daniel, chega a questionar-se sobre o que somos quando nos tiram o trabalho.
Na sociedade ocidental, o emprego define-nos. Quando conhecemos alguém numa festa, das primeiras coisas que lhe dizemos é a profissão. Às vezes nem se diz que se é casado ou que se tem filhos. Por isso, quando se rouba o emprego a uma pessoa ela fica sem saber o seu lugar no mundo.
Antes a primeira pergunta era: de onde vens?
Sim. O mundo mudou. Não estudei a fundo o assunto, mas parece-me inegável que as profissões tornaram-se demasiado relevantes. Passaram a ser objetivos de vida. Antes de sermos advogados já o queremos ser. Vamos para a universidade com esse desejo. E depois somos mesmo advogados. Se algum dia o desemprego nos atinge, ficamos sem o que nos representa há 30 ou 40 anos.
Se acrescentarmos a isso a ideia de progresso, outro dos dilemas do Daniel, o caso fica ainda mais sério?
Exatamente. O progresso permite-me fazer o contraponto com a felicidade. Não acho que o caminho para a felicidade passe pelo progresso. Somos formatados para querer mais, em todos os sentidos. Esquece-se que estudos defendem que o grau de felicidade de uma pessoa não aumenta com bens materiais, só até às necessidades mínimas (emprego, casa, comida) ficarem garantidas. A partir desse momento, a felicidade aumenta muito pouco com a riqueza.
As crises são bons momentos para repensar estas questões?
Na verdade, devíamos estar constantemente a pensar sobre isto. A felicidade fascina-me há muito, até porque sempre me senti uma pessoa bastante feliz. E nunca percebi por que razão as pessoas à minha volta não se sentem também elas felizes, se nada de muito grave lhes está a acontecer.