Um gosto derivativo no contar, uma atenção aos rodeios antes do essencial, um círculo de avanços e recuos em vez de uma reta. Para Ana Margarida de Carvalho (AMC), o como se conta é tão importante como o que se conta. “Uma boa história é aquela que levanta questões interessantes a que demora algum tempo a responder”, afirma. É o que faz nas suas reportagens para a revista VISÃO, onde é grande repórter (ver caixa), e agora na sua estreia literária, Que importa a fúria do mar (Teorema, 240 pp, 15,90 euros), finalista do Prémio Leya 2012. Seguindo a máxima de Machado de Assis, para quem “palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro”, esta é uma história que corre sem pressa: vai por ruas secundárias até chegar à principal. Antes de dizer, perde-se nos prazeres da linguagem, aquiliana em certas passagens, exuberante na sua liberdade expressiva.
Se para muitos Que importa a fúria do mar se afigura um salto natural para a literatura, em alguém que se permitiu muita liberdade no jornalismo, para AMC foi um processo demorado. Sempre esteve ligada à ficção, não só pelos guiões de cinema, peças de teatro e crónicas que já escreveu, mas sobretudo pela família. É filha do escritor Mário de Carvalho e irmã da poetisa Rita Taborda Duarte. A herança familiar, no entanto, causou-lhe mais “embaraços” do que “certezas”. “O que poderia parecer um estímulo, revelou-se frequentemente um “desincentivo”, garante. Entrar no “campeonato” do pai nunca lhe passou pela cabeça. Bastam-lhe as muitas horas que passam a conversar, partilhando histórias. “Como pessoa reservada que é, detesta festas e vida social, o meu pai sempre me pediu para lhe contar histórias do dia-a-dia”, recorda. Não poucas vezes ouviu o desafio: “Tens de escrever isso”.
Igual desafio lhe lançou a editora Maria do Rosário Pedreira. E desta vez não recusou. Com menos exigências no trabalho, foi à gaveta buscar ideias soltas que tinha acumulado. Ossos avulsos a partir dos quais construiu o esqueleto do romance. Regeu-se sobretudo por uma ideia. “Não me interessa o que está próximo de mim”, adianta, acrescentando que o romance que está a iniciar situar-se-á num passado ainda mais distante. Contudo, nunca procurou escrever um romance histórico. Procurou, sim, liberdade para olhar a partir do nosso tempo para outro tempo, abrindo espaço a anacronismos, referências cruzadas, imagens dissonantes. Para esta estratégia inspirou-se em A amante do tenente francês, de John Fowles, e na adaptação cinematográfica que Harold Pinter fez em 1981. Tanto escritor quanto realizador vincaram bem o olhar e a voz do narrador, que ora se confunde com o que conta, ora se distancia. Também de Fowles retirou a ideia para as muitas citações que aparecem em epígrafe ao longo do livro (a começar pela do título, da música Maio Maduro Maio, de Zeca Afonso). Cada uma dá o tom para o que se lerá a seguir.
O trabalho, depois, foi dar corpo às imagens fortes que foram surgindo na cabeça. Quis contar a história de uma pessoa que está apaixonada. E surgiu Joaquim. Quis pô-lo incomunicável. E surgiu o Tarrafal, um campo de concentração que a ditadura salazarista criou em Cabo Verde. Quis vê-lo com vontade de comunicar com a mulher que deixou à espera. E surgiu um maço de cartas lançado de um comboio. Quis ter uma jornalista que se interessasse pelo assunto. E surgiu Eugénia. Joaquim e Eugénia afirmaram-se aos poucos como dois polos unidos por uma mesma condição. “Ambos estão apaixonados por uma projeção”, diz Ana Margarida. Ele pela mulher que deixou à espera. Ela pelo homem que ele outrora foi. São os dois “anti-heróis”, postura expressa sobretudo no percurso de Joaquim, marcado pela fúria do mar que o acompanha ao longo da vida.
E o mar é provavelmente a imagem que melhor descreve este romance. Não o mar da glória da carreira da Índia, mas da nossa História Trágico-Marítima. Não o mar do cliché literário, mas o que engole frotas e sonhos. E condena náufragos. Desterrado no Tarrafal, o mar, para Joaquim, como para Eugénia, será sempre “uma prisão”. E dela só se evade através das muitas portas da escrita de Ana Margarida de Carvalho.
Heterodoxia e liberdade
Pernas para um lado, corpo para o outro, equilíbrio instável mas tranquilo. Em casa, na redação, em trabalho ou em lazer, Ana Margarida de Carvalho evita constantemente o bem sentar. “Não tenho uma boa relação com a secretária”, diz, a sorrir. A rejeição, fruto dos muitos anos que passou como estudante atrás duma, é reveladora da sua personalidade. “Tenho alguma dificuldade em lidar com a hierarquia”, acrescenta. Prefere, por isso, os gestos únicos aos repetidos, a diferença ao padrão, o pensamento desviante ao formal. O seu combate é diário. E contra a autoridade. Qualquer que ela seja.
Foi assim desde sempre. Nas férias, quando brincava metida consigo e esquecendo os outros, e na escola, em que desafiava as normas. Não admira, por isso, que tenha tido uma “escolaridade muito problemática”. Nunca foi má aluna, antes pelo contrário, pois assim tinha menos problemas. Mas nem por isso se livrou de alguns dissabores. Andou de escola em escola, com a agravante de não mostrar “inclinação” para nada. Por conselho familiar, seguiu Direito, na Univ. de Lisboa, mais para disciplinar o pensamento do que por gosto. O primeiro ano ainda não tinha terminado e a conclusão já era óbvia: “Abominei o curso”, brinca. Mas persistiu, o que talvez seja outra característica sua. Não há combate sem resiliência. E o seu fez-se por desvio às obrigações.
Cumpriu com os exames e as orais, mesmo quando estava grávida – tem dois filhos – e os professores não respondiam a requerimentos bem fundamentados. Concluiu a licenciatura em Direito, embora nunca tenha exercido, e nos entretantos ocupou o melhor do seu tempo a experimentar. Fez teatro, cursos de fotografia e de história da arte e até meteu na cabeça que haveria de ser polícia, talvez com a ideia de, acabada a licenciatura, ingressar na Polícia Judiciária, no Tribunal de Menores ou em instituição semelhante. Aprendeu a manejar armas, ouviu tropas especiais a propalar técnicas de defesa pessoal, teve treinos fisicamente puxados. E percebeu que tinha de seguir por outro caminho.
Encontrou-o no jornalismo, primeiro por acaso, depois por talento. Bateu à porta do JL, por indicação do pai, para ver se as suas facilidades de escrita, há muitos anos expressas, poderiam dar em alguma coisa. Entrevistou Michel Giacometti (n.° 419, de 17 de Julho de 1990) e sentiu que talvez gostasse de repetir.
A oportunidade surgiu mais tarde, em finais de 1992, antes do lançamento da revista VISÃO e de um concurso para seus futuros (novos) jornalistas. Passou todas as seleções e ficou. Até hoje, sendo atualmente grande repórter. Já fez de tudo, de entrevistas a reportagens, de crónicas a críticas, nomeadamente de cinema (é coautora do site Final Cut). Agora que tomou gosto ao romance talvez regresse ao chão de sua casa, onde escreveu Quem importa a fúria do mar. A sua liberdade, de facto, nunca se deu bem com a secretária. Nem com regras, que quebra sempre que pode. No jornalismo. E na literatura.