A viaxe polas cegas galerías
foi un século branco, unha verdade
de onde regressamos co relato
da vida como instante radical.
Álvarez Cáccamo
Não sei se a Galiza me chama, se sou eu que invento o seu chamamento. A verdade é que sempre que posso rumo a essas terras modernas que mantêm a antiguidade à vista, como se não quisessem desprender-se de um tempo distante, que os seus filhos invocam com morrinha e sentimento. Sei que as paisagens por essas terras do noroeste peninsular são, como por toda a Europa, balizadas por prédios de muitos andares onde as pessoas dormem à altura dos pássaros. Estradas largas para a pressa do século XXI ocorrer sem pedir licença a nada e a ninguém, a não ser às barras cobradoras das portagens . O resto é telemóvel e velocidade.
Na Galiza o novo mundo ali está por toda a parte. Mas eu sou levada sobretudo pelas suas pedras antigas, as torres sineiras, as vieiras dos bordões, os esconjuros que me falam de um tempo outro, quando nem as serras nem os rios nos separavam. Saudade, diz- se também, perigosa palavra que junta o passado ao futuro e nos faz sofrer gostosamente de mansinho. Porque vou para a Galiza? – Vou por muitas razões. Porque me chamam as fotografias de Luís Casado, o Ksado, e entre imagens de paisagens urbanas e rurais, praças e arcos, barcos em Vigo, correeiros e pastores, sempre julgo que ao virar de uma esquina de Santiago irei encontrar a vendedeira de rua sentada no cesto redondo, de perfil, olhando a fruta, cobrando ao tempo a sua condição de velhice sublimada pela beleza de uma fotografiapintura, como só o conseguiu fazer Kasdo.
Vou porque me chama a voz lírica de Ugia Pedreira, essa figura a meio caminho entre cá e lá, que me envia um recado escrevendo em língua colorida – “Vem escuitar-me a Lisboa. Daqui te envio todos os meus paxarinhos”. E depois envia-me o seu disco precioso, Acrobata. Vou porque me chama o poeta Carlos Quiroga, e depois o poeta Cesário Sánchez Iglesias, e depois o Rafael Janeiro para gravar umas palavras para o vídeo Pacto de Irmãos. E ao subir pela paisagem acima, ali, por onde andaram ao longo dos séculos fidalgos com espadas desvairadas brandidas no ar, entro nos espaços azuis das águas e ouço a voz de Mendinho colocando os versos na boca de uma rapariga – “Sedia-m’eu na ermida de San Simón/ e cercaron-mi as ondas que grandes son/ eu eu atendendo’o meu amigo/ eu atendendo’o meu amigo”.
Vou por Rosalia de Castro e Eduardo Pondal, Castelao e Valle-Inclán, e por cima dessas vozes tão diversas, percursos e credos tão diferentes, vidas tão díspares, livros escritos em idiomas desiguais, chama-me o sussurro dos pinheiros dizendo adeus aos que partiram da terra e não voltaram. Vou porque em pequena um galego, no vocabulário que me transmitiam, era um homem de trabalho de esforço e muita duração. Quando alguém tinha força para trabalhar no duro e a desoras, dizia-se dessa pessoa que era um galego de trabalho.
Depois, passados alguns anos, eu percebi que essa era exatamente a situação dos portugueses pelo mundo fora. Não sei se em algum local, em Paris ou Berlim, Toronto ou Providence, se disse que qualquer trabalhador no duro e a desoras poderia ser designado por português. Mesmo que não tivesse acontecido, eu compreendi, desde cedo, que portugueses e galegos faziam parte daquelas nações que tiveram de se entornar pelo mundo em diásporas difíceis, para sobreviveram à fome e aos regimes totalitários. Perante esses , eu tiro o meu chapéu e ergo a minha taça, e chamo-lhes irmãos. Entre nós, galegos e portugueses, chamemo-nos irmãos vizinhos.
Talvez por essa irmandade que nos fez morrinhentos e saudosos, hoje em dia, as nossas terras estejam abertas aos que vêm de outras terras acossados pela fome e pela guerra. Talvez por isso, saibamos como é importante abrir a porta. Por alguma coisa, os galegos têm no seu hino a palavra “generosos” como o qualificativo mais importante de todos. Um dos dias de maior alegria da minha vida, confesso, foi precisamente, quando me apercebi que os galegos me tinham chamado para sua companhia e me concederam esse epíteto, de generosa, que em galego se pronuncia xenerosa.
Esse foi, na verdade, um dia singular. Fizeram-me os galegos escritora galega universal, colocando-me ao lado de Pepetela, Elena Poniatowska, Antonio Gamoneda ou José Luis Sampedro. Foi na cidade da Corunha, em 4 de maio de 2013, quando a crise económica fervia de um lado e de outro. Andávamos tristes, também de um lado e de outro, mas então o perigo que 0tinha mostrado o rosto que hoje conhecemos e que dia após dia vai ficando mais nítido e mais perigoso.
Os discursos fizeram-se sob o clima da união, aproximados pelo efeito da crise inventada, ou criada, sobre os países europeus do Sul, mas, sobretudo, sobre o papel dos livros, da imaginação, da Literatura, contra as ideias globalizantes, acéfalas e acríticas que arrastam as nações e os países para lugares improváveis. Mal sabíamos nós as surpresas que estes últimos seis anos nos haveriam de trazer. Enunciaram-se os nomes dos escritores galegos que escrevem em galego, e os escritores galegos que escrevem em espanhol, sim, eu sei, com regozijos, mas também dores muito próprias, e foi então que conheci a letra do hino galego.
A dado passo, cantava-se – “Os bos e generosos/ a nossa voz entenden/ o nosso rouco son/ mas nós os iñorantes/ e féridos e duros/ imbéciles e escuros/ non os entendem, non.” A minha fala de agradecimento não sei se foi simples se foi fraca, talvez fraca, mas lembro-me que lá, naquele grande auditório engalanado de festa, disse que em 2008, cinco anos antes, quando ali tinha estado na Corunha, por altura do 18 e 19 de julho, e se havia recordado a queima franquista dos livros, nessa altura, eu tinha ficado instalada no Hotel Atlântico, e havia trazido comigo o cartão que acompanhava a chave eletrónica do quarto.
Dizia o cartão da chave, em forma de aviso como os que se colocam nos medicamentos perigosos – “Cuidado! O uso deste produto pode causar estados de satisfação, extrema descontracção, e desejos de voltar.” Tão interessante era esse aviso de chamamento para uma viagem de volta, que ali estava eu de novo, regressada, para de certa forma nunca mais transpor a fronteira sem um bocado da Galiza sobre os ombros.
Já tinha acontecido ter trazido da Galiza a mochila cheia das melhores lembranças, e até mesmo ter encontrado, ao atravessar a fronteira, o tema para um livro que depois se haveria de chamar Contrato Sentimental, mas naquele momento colocavam-me à vista, sobre as costas, o sinal da vizinhança irmã e isso era distinto. A chave eletrónica do hotel falava em desejos de voltar. Voltei nessa data, voltei há pouco, volto sempre. Quando não volto de verdade, volto em imaginação, ou em livro, lendo Manuel Rivas, Suso de Toro, Álvarez Cáccamo, Cesáreo Sánchez Iglesias, Rosa Aneiros, Olga Patiño, e tantos outros, em nome dos quais a existência é injusta, porque não nos permite alongar o tempo de leitura que deveria ser muito mais vasto do que o tempo da nossa vida.
Mas nem tudo o que me une à Galiza é sério e solene como um pinheiro rumorejando ao vento. Das brumas matinais do Outono, quando os córregos desaparecem sob o manto do nevoeiro, uma alma celta levanta-se da terra, faz bruxaria e dá gargalhadas montada numa vassoira. Gosto disso, dessa fantasia mágica que une o Noroeste da Península Ibérica às falésias da Cornualha e aos campos da Irlanda sob o som de uma harpa cor de prata. Pendurado de um prego, na parede da cozinha, tenho um conxuro galego, A Queimada, trazido de Santiago de Compostela, num dia em que o botafumeiro parecia desprender-se do teto da catedral para ir espalhar incenso pelo mundo inteiro. Comprámo-lo numa ruazinha tortuosa à sombra das grandes torres. A Queimada galega, que está pendurada diante da janela da cozinha, invoca mouchos, coruxas, sapos e bruxas, e bastantes outras identidades maléficas, ardendo num balde de aguardente incendiada, e tudo isso para purificar a gente, não se sabe bem de que males. Brincar faz bem à alma. Olho para este retângulo amarelo com os emblemas de A Coruña, Lugo, Ourense, Pontevedra, e lembro-me da alegria galega, irónica, um tanto ressentida, que irrompe quando nos sentamos à mesa e se pede que nos sirvam todo o tipo de animais do mar com suas conhas e sua tinta negra. Nesses momentos, fala-se em voz muito alta, e podemos confessar tudo, alegrias e dores, que estamos seguros do entendimento. Ao contrário das espadas, a Literatura é sempre uma outra pátria que une.
Boliqueime, 10 de julho de 2019