José Gardeazabal, vencedor da 1ª edição do Prémio de Poesia Vasco Graça Moura/Imprensa Nacional – Casa da Moeda (IN/CM), apresenta-nos em História do Século Vinte um curioso livro de poemas. Talvez a excentricidade do título seja a primeira das pontes de sentido que devemos atravessar para ler os 216 textos que compõem este volume da renascida colecção “Plural”, a qual, nos idos de 1980, justamente sob a direção de Graça Moura, revelou poetas como Paulo Teixeira, Fernando Luís Sampaio ou Luís Filipe Castro Mendes. Não é de somenos chamar a atenção para esse facto: a IN/CM, pelo peso simbólico que possui, tinha (tem) de ter uma digna colecção de poesia e José Gardeazabal (JG), enquanto premiado, como que representa essa colecção agora renascida. Tanto mais representativo é esse renascimento, quanto é verdade que Gardeazabal, na própria forma dos seus poemas – narrativos, de verso longo, analíticos, quase que perseguindo uma espécie de poema/ensaio – vem acentuar a impressão de que vivemos hoje um período rico no que respeita a experiências de linguagem poética. É, aliás, sintomático que o título – literal, sem espaço para ambiguidades – funcione como eixo condutor dos textos, cada um deles com a função de apresentar cenas, episódios, interpretações do século passado, à maneira de um guia da história.
As epígrafes de Apollinaire e de Borges mostram já o caminho que os poemas pretendem percorrer: persegue-se a leitura da “vigésima pupila dos séculos” e o fito é contar todo o passado num “outrora agora” pessoano e que, de algum modo, a sentença de Borges vem precisar: “Depois a história universal. Agora.” Deste ponto de vista, JG une as pontas do livro (primeiro e último poema) de forma, digamos assim, quase romanesca. O primeiro verso do volume, “ainda não li tudo” (ambição borgesiana, sem dúvida e que reenvia a Mallarmé e a ideia de que tudo nasce para ser livro), interage com o verso final: “(não lemos tudo)”. É essa ideia de leitura do tempo que justifica um título heterodoxo para livro de poesia (se é que há ou tem de haver alguma poeticidade na escolha de um título para um livro de poemas – e nós achamos que sim, que tem de haver), colocado assim: História do Século Vinte, como quem poderia escrever, correpondendo à suprema ambição de um novo Pierre Menard, Poema do Século Vinte.
Do título aos textos, espera-nos uma deambulação por versos que fazem ecoar acontecimentos, num tom que JG vai buscar a algum Álvaro de Campos (“uma turbina gira para iluminar os operários de aço,/ e tudo isto barato!”), quando lê o início do século e a industrialização do ferro e do aço, o nascimento e formação, consolidação mesmo, do proletariado como massa de trabalho, ou quando assume que, ao rever a I Guerra Mundial, lê “o jornal com o espírito das trincheiras”. Alusiva umas vezes ou absolutamente clara nas referências a uma belle époque que antecedeu o conflito de 1914-1918, Gardeazabal vê bem o modo como à ilusão de uma paz eterna se sucedeu, nas artes e na política, na economia e na vida privada, o desencanto, o cinismo de uma época que é, ainda, a nossa: “teóricos militares assistem a dois séculos de manobras operárias/ […] / os prisioneiros torturam os amigos para saber mais” (p.12).
A voz deste sujeito que deambula pelos episódios do século passado tem sempre o mesmo tom: narra, fotografa, chama a si uma omnipresença que, à maneira de um narrador implicado, lembra muito Peter Handke e o seu Poema à Duração. É uma voz fria, procurando pintar, “por letras, por sinais”, os quadros revoltados que um Cesário não desprezaria. Poemas de metros diversos, sem preocupação rimática ou rítmica, a voz da enunciação mergulha, não raro, em vertiginosas ficções, isto é, em modos de dizer a carnificina do nazismo ou os totalitarismos, a violência sexual ou a ascenção da mediocridade, como se ao poeta coubesse a função de, como um intérprete das dores da História, ler os signos e os símbolos, os vestígios e as marcas do hodierno: “todos encontraram o dom do discurso/ modularam a voz e o tempo/ ensaiaram fúrias, gestos e sorrisos/ exagerados pelas luzes e coros de música/ estavam todos preparados para mil anos” (p.89), aqui em reenvio histórico para o III Reich e o que o projeto nazi de um império para mil anos concebeu. Importa, porém, perceber que a arquitetura do livro, com poemas sem título e numerados, pode não obedecer a uma leitura diacrónica do século passado. A par de um texto sobre o holocausto temos poemas sobre a guerra da Jugoslávia, o massacre de Katyn, ou as políticas do pós II Guerra e o que, para o poeta, significou o plano Marshall (a venda da Europa à América).
No limite, História do Século Vinte mostra um projeto poético a caminho da sua própria negação: quem escreve versos sabe, desde a Carta de Lord Chandós, que a linguagem com que dizemos o mundo é falha de sentido, e tem, a impulsioná-la, a gaguez, a dificuldade de nomear este mundo. No poema nº 103 encontramos a tese deste dialético livro de poemas (JG é um leitor rigoroso da ciência política, como se sabe): “cada ficção é um labirinto de criminosos,/ messias alternativos. Antes de ser fuzilado o poeta dedica-se à novela/ (tarde de mais)/ ‘fogo’ ouviu-se,/ uma mistura de mágica e de exatidão,/ o conflito universal disfarçado em diálogo inteligente […]/ a morte torna-se demasiado natural/ (falo por mim)” (p.116). É esse falar por si que permite que o discurso ora se amplie, ora se concentre (há versos isolados do corpo dos poemas, não raro versos constituídos de uma só palavra), ora se construa em regime citacional, dando a impressão de que o sujeito, o tal narrador implicado, é autor e actor da História. Dito de outro modo, José Gardeazabal toma para si a representação do poeta como corredor de fundo da narrativa humana: é ele que, no fim de contas, se mostra como “atleta pintor”, correndo “de tesoura nas mãos”, rodando na “cadeira à volta da tela”, cortando e recortando “porque lhe interessam as figuras humanas” (p.122)
História do Século Vinte: Recortar figuras humanas
José Gardeazabal organiza os acontecimentos mais marcantes do século XX numa obra poética, vencedora da primeira edição do Prémio de Poesia Vasco Graça Moura/Imprensa Nacional - Casa da Moeda (IN/CM).
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