Jaime Ramos (JR), comissário da Polícia Judiciária do Porto, a personagem criada por Francisco José Viegas, presente na maioria dos seus romances a partir de 1991, envelheceu. Disso nos dá conta A Poeira que cai sobre a terra, um conjunto de cinco contos de que se destacam os dois primeiros, os maiores, “Um gosto pela imperfeição” e o que dá título ao livro.
Um travo de melancolia atravessa a personagem, do qual nasce o lirismo da obra. Nem pessimista nem optimista, JR olha para o mundo com a visão de que tudo (o mundo, a sociedade, a vida) está certo porque tudo está errado e tudo está errado porque tudo está certo. A mesma visão que possui da sua existência pessoal – fez o que tinha de fazer, outra coisa não poderia ser. Para ele, não vale a pena imaginar ou pensar outra vida, ter casado e tido filhos, ido viver para outra cidade, optado por outra profissão que esta de fazer justiça aos mortos, descobrindo-lhes o assassino, não ter uma verdadeira paixão pelo Futebol Clube do Porto. Tudo foi como devia ter sido. E se tudo não correu sempre bem, também não correu sempre mal. A melancolia de Ramos, presente nos cinco contos, constitui, justamente, a consciência recorrente do sentimento de equilíbrio entre a existência que poderia ter tido e a que teve, verificando que esta, ainda que não perfeita, foi superior àquela que teria tido se tivesse optado por uma vida normalizada (casado, pai, apartamento maior, emprego a horas, grupo de amigos certos… a paixão pelo futebol permaneceria).
Deste equilíbrio melancólico nascem as inúmeras páginas de inventário de factos da existência que JR viveu ou simplesmente constatou existirem. Por todas, dê-se como exemplo a lista da p. 84, na qual confessa ir “morrendo com o tempo” e não esperar um futuro “melhor do que o presente”. Do mesmo modo,o seu adjunto Isaltino de Jesus, de existência normalizada, queixa-se de JR, bufando entre dentes “o cabrão do velho”.
Do sentimento melancólico faz parte a preocupação pelo estado físico do corpo. Não por acaso, sofreu um AVC em romance anterior, mas não desiste de fumar cigarrilhas, mesmo no interior do edifício da Polícia. É, assim, com melancolia, que olha para os ginásios aparecidos no Porto este século (p. ex., pp. 121-125), para o corpo esbelto que poderia ter se os frequentasse. Porém, a sua lucidez permite-lhe perceber, no conto que dá nome ao livro, que a dona de um ginásio de moda, Clara de Souza Cruz, de corpo perfeito e mente desequilibrada, por muito exercício físico que faça, não evita as consultas no psiquiatra. Rosa, companheira de JR, vivendo ambos em casas separadas, ainda que no mesmo prédio, admoesta-o pelo irregular estilo de vida, mais do que irregular, vicioso, que o conduzirá a uma morte precoce. Lembra-lhe que poderá viver mais tempo, mas ele pergunta-se para que quer “esse tempo todo”.
Neste sentido, faz parte do sentimento melancólico uma consciência como que intemporal ou meta-temporal, pela qual os momentos do futuro são perspetivados como recorrências do passado, ou seja, Ramos consciencializa que já experimentou tudo o que de importante pode existir na vida de um homem, e o que não viveu foi por voluntária opção pessoal, não por exigência exterior. Por isso, nada de radicalmente novo lhe pode trazer o futuro, e todo o passado se encontra vivo e atuante no presente da sua consciência.
O título do livro é ele próprio uma representação metafórica da melancolia – a verificação da impossibilidade de suspensão da passagem do tempo e da inexorabilidade do envelhecimento e da corrupção do corpo e da mente. Numa palavra, do envelhecimento de JR, que vê que o Portugal atual, dos negócios e da política, já não é o seu, o antigo Portugal da liberdade de fumar em qualquer sítio, o tempo em que os assassinos eram mesmo “maus” e não como o “troca-tintas” de Ricardo Salgado ou a nova elite inglesa do Porto (família Graydon do primeiro conto), o tempo de apreciação de uma boa mesa, da alforria face ao casamento burguês… Passou o tempo, mudou a sociedade, e o detetiva envelheceu. Não me admiraria que, em romance posterior, sofresse novo AVC. Não que morresse, já que só merece morrer com o autor.
Jaime Ramos fez 25 anos de existência e, em artigo anterior no JL, tivemos oportunidade de compor a sua biografia e caracterizar a sua figura literária. É muito tempo para uma personagem literária. O seu émulo literário, Mário França, detetive privado, “o maior detetive do mundo”, personagem dos romances de Miguel Miranda, perfez recentemente 17 anos. Vidas e estilos diferentíssimos, otimista e trapalhão França, filosófico e melancólico Ramos, têm em comum a atmosfera do Porto, embora Ramos tenha viajado um pouco pelo mundo inteiro. Neste livro desloca-se à Austrália para constatar que os atletas portugueses olímpicos já não são o que eram. Como as restantes forças sociais, como a restante sociedade. Mas Jaime Ramos não tem pena, não sente saudade nem nostalgia, não quer regressar ao passado. Possui apenas um sentimento melancólico.