Será que não basta fazer os possíveis e os impossíveis para ter um emprego, uma vida digna, fazer o caminho que se sonhou? Chegámos a um beco sem alternativas sociais, culturais, pessoais? Estas são algumas das questões que suscita O fim das possibilidades, de Jean-Pierre Sarrazac, uma coprodução do Teatro da Rainha e do Teatro Nacional de S. João. Um espetáculo que ‘engana’ o título, afirmando “a imaginação e o humor” como “armas de combate pelo renascer das possibilidades”, de “criar um futuro”, como diz Fernando Mora Ramos, que assina a encenação com Nuno Carinhas.
Partindo do bíblico Livro de Job, a peça é uma “fábula satânica” sobre a “crise da atual sociedade”, como adianta por seu lado, ao JL, o dramaturgo e encenador francês, que acredita num teatro que liga o arcaico e o contemporâneo e tem uma função crítica. Depois da estreia, no Porto,O fim das possibilidades sobe à cena do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, de 10 a 19. A 11, às 16 e 30, no salão nobre do teatro, Sarrazac vai participar na conferência “Calma, não é o fim”, com Cândida Pinto, Frei Bento Domingues, João Barrento, além dos encenadores, com moderação de Pedro Sobrado. Dias 29 e 30, apresenta-se nas Caldas da Rainha.
JL: O fim das possibilidades é uma fábula da sociedade contemporânea?
Jean-Pierre Sarrazac: De um dos aspetos mais dolorosos da crise atual das sociedades neo-ultra-liberais: a violência e sofrimento que afeta cada vez mais gente, sobretudo os sem papéis, os novos pobres, os trabalhadores precários.
São os sem rosto, o coro da sua peça?
Há uma dimensão épica, coral, combinada com personagens individuais. Deus e Satã são metáforas do decisor, do governante e do seu conselheiro, que fizeram um pacto para fazer desaparecer essas pessoas, através de uma “transumância”, de uma descida aos infernos. Mas há um grãozinho de areia na engrenagem: JB, aliás, Job, vai contrariar os planos de Satã, simulando o seu próprio enforcamento, um suicídio de resistência. Essas situações limite são carnavalescas no sentido de Bakhtine. Ou seja, uma combinação entre Carnaval e Quaresma.
Quer dizer que vivemos num tempo em que não é mais possível pedir o impossível?
A ideia do fim das possibilidades é usada para estigmatizar a atual situação de resignação ao mal, de submissão à lei de uma economia capitalista ferozmente desumana. Na verdade, transforma-se num apelo a uma reabertura das possibilidades. Talvez já não se trate exatamente de reclamar o impossível, como dizíamos depois do Maio de 68, mas de reencontrar o espírito da utopia concreta.
O teatro tem um papel importante na denúncia deste presente?
Aquele de que gosto e que faço tem de certeza uma função crítica. Aproprio-me da ideia de Barthes, segundo a qual o teatro pode fazer o “grande comentário da sociedade”. E pode não só denunciar a alienação, o nosso atual enclausuramento num presente estagnante e regressivo, sem abertura ao futuro, mas sobretudo definir as perspetivas de uma desanalienação.
E quais as possibilidades que nos restam?
Essa resposta não é o teatro que a pode dar. Fazer um inventário dos possíveis e experimentá-los é assunto da práxis social e política. O teatro pode semear na consciência dos espectadores os grãos de uma resistência à ordem atual das coisas e uma vontade de mudança.