“Porque é que todos se encantam com os pirilampos a palpitar na noite?” (p.53). Esta pergunta, colocada sensivelmente a meio da obra, bem poderia ser a marca de uma vibração rítmica que atravessa os seis ensaios do último livro de José Gil (JG), Trajectos Filosóficos, editado pela Relógio d’Água, com revisão crítica de Ana Godinho. O livro progride em seis capítulos: “O que faz o filósofo”, “O devir-animal”, “Que corpo?”, “Seis conceitos”, “o Aqui-Agora” e “Explicitando Caos e Ritmo”. Sob esta estrutura palpitam, entre outras, questões sobre o vazio, sobre o inconsciente, sobre o corpo, e outras tantas perguntas: o que é o devir, o que é o pensamento, qual o lugar para o pensamento, como se gera o pensar, onde fica a filosofia e qual o seu alcance. Numa época em que estamos rodeados de obscuridade “a filosofia faz nascer traços de luz”, escreve José Gil (p.52).
Com efeito, reconhecendo uma escassez atual de pensamento filosófico envolvente e sistemático, o autor vai em direção oposta a uma tendência de vulgarização superficial das ideias, afirmando a potência do pensamento, a sua profunda ligação ao plano do microscópico e do molecular. Para JG, pensar é revolucionário. Assim, ele propõe ao leitor um caminho de e em profundidade, que não se satisfaz com as análises superficiais e que avança em múltiplas direções, unificadas pelas infinitas possibilidades de ligação entre realidades heterogéneas. Propõe justamente que a filosofia estabeleça associações não dependentes das relações de causalidade, mas sim caucionadas pelo princípio da “consistência do pensamento” (p.14). Trata-se, portanto, de pensar, não apenas estabelecendo a universalidade lógica de cada relação, mas também recorrendo à infinitização do sentido.
O sexto e último ensaio, “Explicitando Caos e Ritmo”, remete para a obra que precede a aqui em análise. Caos e Ritmo não estava fora da vida concreta. Estes Trajectos Filosóficos também não. A partir da caracterização da nossa época como um tempo de globalização crescente do caos sociopolítico e ecológico, o autor mostra como a caotização do mundo surge ao mesmo tempo que a aceleração da tendência para a algoritmização da vida e para a virtualização da realidade. Ou seja, “a algoritmização da vida contribui para a sua caotização e esta suscita a vontade de a controlar, algoritmizando-a.” A pergunta passa então a ser: “Como fazer para que estas duas forças percam os seus vetores mortíferos?” (p.174)
A resposta do filósofo é uma resposta de projeto, que se poderia resumir do seguinte modo: “Contra toda a espécie de constrangimentos, barreiras e falsas evidências dóxicas que a sociedade das tecnologias e do desafio impõe, atualmente, ao exercício de pensar, a filosofia deve insistir na preservação de dois fatores de que tira o seu alimento e a sua força: o vazio e a liberdade.” (p.45) Ao mesmo tempo, JG regressa a uma das questões que atravessa o conjunto da sua obra – a questão do corpo – dando seguimento à pergunta formulada por Spinoza e desenvolvida, entre outros, por Deleuze. Interpela-nos Gil: “No meio de uma natureza violentada e de uma comunidade ferida, que corpo se procura, hoje, para a humanidade que vem?” (p.95).
Reconhecendo que “a arte supõe um poder do corpo não algoritmizável” (p.174), Gil identifica um poder que alimenta todos os outros, e que sustenta tanto o corpo paradoxal, quanto o corpo espectral, tanto o corpo imediador, quanto o corpo contrator, “pois cada um existe e se traduz nos outros, cada um contém em si o poder de devir os outros” (p.79). Assim, o filósofo, porventura à semelhança do artista e do feiticeiro, segrega (ou pode segregar) um pensamento que maquina ligações diversas. Na verdade, persegue, não “um fio vertical, de baixo para cima, mas antes horizontal, com os sobressaltos, os obstáculos e os precipícios imprevisíveis que surgem na planície.” (p.52).
Em Trajectos Filosóficos refletem-se sobressaltos e obstáculos e o autor caminha, por assim dizer, na borda do precipício, encarando o vazio. Que vazio é este? Um vazio povoado, já que, conforme escreve, “o Vazio não é o nada, mas o espaço sem espaço e o tempo sem tempo onde circula a energia impessoal, simultaneamente cósmica e caótica, sem nexo ou função, sem forma ou finalidade” (p.146). Estamos aqui no terreno do inconsciente, traçado como um agente ativo que, em termos deleuzianos, faz a passagem dos órgãos do CsO aos novos órgãos do corpo intensivo. Trata-se, para JG, de um “inconsciente inteligente”. Como se pode aceder a este plano? Ele elabora neste ponto um conjunto de procedimentos: (1) seguir “as séries de pequenas perceções que envolvem o sintoma macro – sendo que a sua análise ocorre no plano da consciência, podendo mesmo constituir uma pequena fenomenologia do sintoma”; (2) permitir que as séries de pequenas perceções se dissipem (“começa aí o vazio”, declara); (3) analisar os contornos do vazio, “contornos traçados no em redor interno do espaço vazio (ausência de sintoma), em interface com os últimos conteúdos visíveis (analisáveis) das pequenas perceções” (p.170).
Realizando uma fina leitura de Agamémnon, de Ésquilo, e de Macbeth, de Shakespeare (à qual regressa após a brilhante análise que encetara em Caos e Ritmo) JG convida o leitor a pensar a questão do destino, da liberdade e da configuração das inscrições a partir das ausências. Ao mesmo tempo, vai encontrar na obra de um Kafka, nomeadamente na Metamorfose, matéria para pensar o devir-animal, justamente no ponto em que este é anulado, como a maçã que se incrusta nas costas do pobre Gregor Samsa e aí fica parada, imobilizada, imobilizando a criatura. Ora, o devir é incessante, não fixo.
O esforço de raciocínio desloca-se então para a necessidade de elucidar como é que as coisas se transformam, porque é que as forças circulam e constantemente religam o abstrato e o concreto. José Gil escreve: “Só o ritmo reúne o poder de um tradutor universal do abstrato e a capacidade de apanhar as mínimas nuances singulares do concreto. O ritmo pulsa o tempo e traduz qualquer textura (sensível ou inteligível) em temporalidade e, inversamente, qualquer ordem temporal em matéria sensível” (p.81). Para ele, “o ritmo sai do caos de onde ele tira toda a potência de vida” (p.83). Para que o ritmo atue torna-se então necessário que forças diferenciantes na matéria e no espírito se manifestem, mesmo que fora dos discursos convencionais, ou rasgando a prisão das palavras.
José Gil: O Ritmo sai do Caos
Daniel Tércio escreve sobre Trajectos Filosóficos, o mais recente livro de José Gil
Mais na Visão
Parceria TIN/Público
A Trust in News e o Público estabeleceram uma parceria para partilha de conteúdos informativos nos respetivos sites