Ao segundo dia, o Festival de Filosofia de Abrantes, que decorre até ao próximo dia 18, assumiu a sua vertente ambulante. À semelhança do que aconteceu em 2017, o encontro convocou os concelhos limítrofes. Ao Sardoal juntou-se, este ano, Mação. No renovado Centro Cultural Elvino Pereira realizaram-se ontem, sábado, 10, duas conferências sobre temas que, na tentativa de antecipar o futuro, interpelam o presente.
Gonçalo Marcelo, professor da Universidade Católica do Porto, falou sobre o “impacto social da quarta revolução industrial: desafios éticos e políticos”. E Steven S. Gouveia, doutorando da Universidade do Minho, abordou a questão do “transhumanismo e inteligência artificial: pressupostos filosóficos e consequências éticas”. A uni-los uma mesma convicção: “A ter um papel, o da Filosofia será a atenção crítica e constante ao que nos rodeia. Mesmo sabendo que se trata de um exercício a posteriori, é uma dimensão fundamental”.
As duas conferências centraram-se na presença (e consequências) da tecnologia no mundo contemporâneo. Também poderíamos dizer “omnipresença”, o que justifica o uso dos termos “quarta revolução industrial” e “transhumanismo”.
Sem pessimismos, Gonçalo Marcelo vê na tecnologia um “potencial emancipatório”, tal como Hegel o concebia. E recorrendo a uma antiga formulação afirmou: “Será um fármaco mortal, se tomado em excesso, ou salvador, se consumido adequadamente”.
Nem tudo, no entanto, se resume à dosagem. “Com a profunda automatização dos processos industriais e com máquinas que aprendem sozinhas, a revolução a que assistimos é muito mais radical”, afirmou. “Por outro lado, a Internet nem sempre cumpre a promessa de uma aldeia global. Em vez de ser eficaz, a comunicação nas redes sociais é difusa. Não confronta as pessoas com os limites dos seus conhecimentos. Apenas lhes oferece o que já sabem. É um mundo de bolhas que não se tocam.”
A quarta revolução industrial, dizem os estudos citados por Gonçalo Marcelo, afectará sobretudo o mundo laboral. Milhões de postos de trabalho eliminados e muito menos profissões. “Até as actividades criativas, como a dos filósofos, que em teoria estariam a salvo, parecem ameaçadas pela Inteligência Artificial”, adiantou o investigador. Provavelmente, o emprego será descontínuo e muito qualificado, o que exigirá constante regulação. “Se não for feito nada, os resultados da revolução industrial em curso não serão agradáveis”, alerta, focando-se no desemprego estrutural, nas desigualdades acentuadas e na vida em comum mais dificultada.
Dentro do mesmo quadro conceptual da quarta revolução industrial, aquela que se define pela afirmação do digital, Steven S. Gouveia centrou a sua conferência no campo do transhumanismo, no qual o humano e a máquina se fundem. É uma área de trabalho “ainda muito verde”, faz questão de lembrar. “O bebé acabou de nascer”, diz. “Daí que não haja grande variação entre as previsões dos especialistas e a dos não especialistas”. Por outras palavras: “As previsões dos dois grupos são confiantes, diversas e erradas”. Um área complexa, portanto, influenciada pela literatura e pelo cinema. À falta de conclusões sobre o que teremos no futuro, a Filosofia pensa os seus problemas morais e éticos.
O principal pressuposto filosófico que move os investigadores do transhumanismo é a morte. “O envelhecimento é visto como algo que deve ser combatido, uma doença”, esclarece o estudioso. Nessa luta, a tecnologia revela-se a ferramenta mais adequada para prolongar ao máximo a vida. Mas como alcançar o elixir da eterna juventude, a imortalidade? Eis a questão.
O mind uploading (ou transferência mental) pode ser um caminho. A ideia passa por copiar a mente num substrato não biológico. “Se já o fazemos com os corações artificiais, por que razão não avançamos também para o cérebro?”, questiona-se Steven, fazendo eco das teses transhumanistas. Haverá, claro, diversas possibilidades neste cenário tão comum na ficção científica. Por exemplo: uma destrutiva, que simplesmente reconstrói o mapa do cérebro; ou uma gradual, que substitui neurónios danificados por neurochips. Em qualquer dos casos, a dúvida subsiste, como nota o investigador: “Assumindo que a mente sobrevive ao processo, o que acontece à pessoa?”
O que é, então, a identidade pessoal? Num Festival de Filosofia as perguntas são mais importantes do que as respostas. Esta também ficou no ar numa espécie de desafio ao público que assistia à conferência. E a esta juntou-se outra: o que acontecerá ao ser humano num cenário de inteligência artificial e robots hiper-dotados?
Gonçalo Marcelo e Steven S. Gouveia alinham na mesma ideia: Rendimento Básico Incondicional. Mas o primeiro é mais entusiasta do que o segundo. “A quarta revolução industrial é uma oportunidade para repensarmos os esquemas de proteção social. Temos de usar as mais-valias que as máquinas proporcionam para o bem comum”, afirma o professor da Universidade Católica do Porto. “Sem a obrigação de uma vida produtiva, a liberdade para cada um viver como quiser”, acrescenta. Na Política, na Ciência e na Filosofia, o futuro permanece uma utopia por cumprir.