Na apresentação aos jornalistas de Para Onde Vão os Guarda-chuvas, Clara Capitão afirmou haver um Antes de Cruz e um Depois de Cruz na Alfaguara, que dirige. E não exagerou. Na verdade, o escritor tem trazido muita novidade à editora, sobretudo ao nível gráfico. Os seus livros, pouco ortodoxos também no formato e no grafismo, têm chocado com as normas internacionais do grande grupo espanhol. A coerência das capas e paginação é, de resto, uma das sua imagens de marca. Mas os livros de Afonso Cruz (AC) esticam sempre as margens, rompem a mancha gráfica, cruzam fronteiras. E isso dá trabalho. E muito prazer também, garante Clara Capitão.
O caso mais sintomático desta postura é a sua Enciclopédia da Estória Universal, já com dois volumes editados na editora: Recolha de Alexandria e Arquivos de Dresner. Os livros são de capa dura e de maior formato, fugindo ao grafismo convencional, sobretudo na paginação. O mesmo, de resto, acontece em O Livro do Ano, lançado no primeiro semestre de 2013, em que ilustração (muita) e texto (curto) se fundem num relato do dia-a-dia de uma jovem. Para Onde Vão os Guarda-Chuvas, uma das grandes apostas da Alfaguara para esta rentrée, não é diferente. Fotografias, ilustrações e arranjos gráficos, com três livros dentro de um só, reforçam a ideia que no depois de AC cada livro é uma equação difícil de resolver. Um “desafio”.
Não é só na forma que se pode delinear um antes e um depois. A entrada na Alfaguara, na sequência da passagem pela Bertrand e pela Quetzal, e os lançamentos já realizados talvez marquem mesmo uma ligeira mudança na obra do escritor. Nada do que aqui já se escreveu é novidade para quem conhece Os Livros Que Devoraram o Meu Pai, O Pintor Debaixo do Lava-Loiças e, sobretudo, A Boneca de Kokoschka, que incluía romance dentro do romance, um escrito por um tal de Mathias Popa, uma das personagens da história. Também não será novo nos três livros que agora chegam às livrarias a constância da ação e a permanência do pensamento aforístico. Parece, no entanto, que tudo isto se apresenta noutro ritmo, como se misturados numa única argamassa. Como Jesus Cristo Bebia Cerveja, Para Onde Vão os Guarda-Chuvas sublinha o gosto profético, evangelista e apócrifo de AC. Ao contar a história de um muçulmano que, para quebrar ódios antigos, incluindo os seus, adopta uma criança americana, o que sobressai são as reflexões do escritor sobre a religião, as suas parábolas de muitos sentidos, os aforismos de impacto imediato.
Para Onde Vãos os Guarda-Chuvas é um romance sobre a perda, mas também um relato sobre a demanda do sentido da vida, testemunhado através de vários credos, alguns reais, outros inventados. O que une Fazal Elahi, Badini e Nachieketa Mudaliar, habitantes de um Oriente efabulado, são as tentativas de encontrar uma lógica para a existência humana através de sabedorias ancestrais. E nesse processo espiritual e civilizacional, AC funde a ação com o pensamento, na linha das grandes religiões orientais. Sugere em vez de afirmar, inventa em vez de mostrar, opta por múltiplas hipóteses em oposição a certezas únicas e dogmáticas. No fundo, pergunta e não responde.
Os outros dois livros que também chegam agora às livrarias são uma peça de teatro, que marca a sua primeira incursão no género, e um livro infantil. O Cultivo de Flores de Plásticos (mais outro formato inédito) é o texto que escreveu para a companhia Gato Que Ladra e a associação CASA – Centro de Apoio ao Sem-Abrigo.
Depois da estreia em julho, regressa aos palcos em dezembro, no Teatro da Trindade, em Lisboa. Quatro sem-abrigo – Jorge, Lili, Couraçado Korzhev e Senhora de Fato – atravessam a vida num manto de invisibilidade. Mas aqui têm voz. E dizem: “No fundo é isso. Ninguém nos vê. Somos invisíveis. A miséria é uma poção de invisibilidade. Quando as roupas ficam rotas, quando estendemos uma mão, puf, desaparecemos. Somos as pombas dos ilusionistas. Isto dava um negócio, dava para ganhar a vida com os turistas. Levava-os a ver fantasmas numa cidade assombrada”.
Na Editorial Caminho sai ainda Assim, Mas Sem Ser Assim, com umas quantas “considerações de um misantropo” que se aproximam do espanto infantil da A Contradição Humana. Incentivado pelo pai a comunicar com o mundo que o rodeia, o narrador deste livro (Uma criança? Um jovem? Um adulto?) começa a observar os hábitos dos seus vizinhos. E a perceber que o luxo para uns é condenação para outros. Ou não houvesse em Afonso Cruz sempre duas (ou mais) formas de olhar a mesma questão. L.R.D.
PARA ONDE VÃO
OS GUARDA-CHUVAS
Alfaguara, 624 pp, 19,50 euros
O CULTIVO DE FLORES
DE PLÁSTICO
Alfaguara, 104 pp, 13,50 euros
ASSIM,
MAS SEM SER ASSIM
Caminho, 40 pp, 12,90 euros