Ouço dizer que anda lá fora uma tristeza. Inclino-me à janela e não a vejo. Pergunto então: de que tristeza falam? “Da morte”. Oh, sim, morre-se muito no Outono. É esse, aliás, o tempo natural. As árvores, por exemplo, cumprem sempre. Deitam ao chão as suas chaves de ouro e fecham-se por dentro, inacessíveis. Mas a que morte se referem?
A que perda, a que grande vazio se referem?Alguém murmura agora o nome dele. E, junto com o nome, vem o som de portas que se fecham com um pouco mais de cuidado do que é habitual. Esse cuidado da delicadeza que o luto implica entre os ocidentais. Eu antevejo tudo o que se vai seguir e sei que não vou estar em lado algum, sei que meu amor pela Agripina, pela Filipe, pelos netos, chegará até eles a certa altura, muito depois, quando as pequenas coisas puderem outra vez dar-se a ouvir.
Faço a minha vigília em solidão, sem perceber de que tristeza falam. E sobre que tristeza escrevem eles. Não conhecem os rios da Irlanda? Existem, na Irlanda, rios assim: seguem pelo seu curso e, de repente, desaparecem, deixam a paisagem. E, mais longe, aparecem outra vez. Entram na terra, continuam a fluir pelos túneis do subsolo, depois emergem. É um fenómeno próprio do que ali se chama karst, formações de calcário vulneráveis à corrosão das águas pluviais. Não é um plágio da eternidade, é simplesmente aquilo que permanece ainda quando deixa de ser visto. É isso que eles ensinam, esses rios. É isso o que, apesar de uma tristeza andar lá fora, como me dizem, leva a que a não compartilhe.
Quando vier a hora de chorar já eu não estarei viva há muito tempo. Só acontecerá quando as catástrofes eliminarem a humanidade e, com ela, as palavras e, com elas, o que o António escreveu. Esse caudal.
Nem sei se hei-de chamar-lhe literatura porque no caso dele não se trata de uma categoria no meio de outras que igualmente componham a experiência vital. Tudo nele, o olhar, a voz, as mãos, o entendimento com o vegetal, a imobilidade que levou certa vez uma ave a pousar-lhe no braço porque o tomou por um arbusto no jardim, o formar com os livros, folheando-os, um híbrido sensível e pensante, foi uno, é uno e uno ficará.
Testemunhei, tarde após tarde, a cólera que uma única falha dos homens provocava: era o mau uso, o uso sem rigor, o uso imponderado das palavras. A sua bela cabeleira ardia na fulgurância da indignação. Comparam-no alguns a um menino autocentrado e pronto a fascinar-se. O que há nele, sobretudo, é uma nobre e sábia rebelião, a que não dobra ante a realidade e quer ver tudo e ligar tudo com os fios que a luz e a pressa ocultam aos comuns. Os fios que ele descobria entre as palavras.
Recebia-me sempre com a quadra de Fernando Pessoa: “Gato que brincas na rua/ Como se fosse na cama,/ Invejo a sorte que é tua/ Porque nem sorte se chama.” Dizíamo-la os dois ao mesmo tempo, depois ríamos muito. Dizemo-la e rimos, hoje, aqui.