Jorge Ferreira de Vasconcelos, comediógrafo notável do Renascimento Português, contribuíu de uma forma valiosíssima para o teatro em Portugal. Estrelas de primeira grandeza, as suas comédias Eufrosina, Aulegrafia e Ulysippo, são fontes de luz que o tempo e o esquecimento quase extinguiram da nossa memória.
Quando a 27 de Março de 1995 foi apresentada, em estreia mundial a Comedia Eufrosina, a recepção do público e da crítica não podia ter sido mais entusiástica e unânime quanto ao texto e ao espectáculo. Manuel João Gomes, no Jornal o Público de 30 de Março desse ano, dizia: “Ainda bem que nascemos e vivemos em Portugal, destinados, portanto, a ser descobridores, mesmo contra a nossa vontade. Assim é que, só 440 anos depois de ter sido escrita, descobrimos no palco uma das poucas comédias e, porventura, a melhor de todas as que no século XVI se escreveram em português. A “Comédia Eufrósina”, aí está, finalmente, em cena (…) deixou para sempre de ser um texto massudo, irrepresentável, moralista, destinado a ser passatempo de alguns poucos especialistas. Graças à encenação e ao tratamento dramatúrgico (…) passou a ser uma comédia popular e a caber no “top” dos melhores textos dramáticos portugueses. Como poderá comprová-lo quem, hoje mesmo, vá ao Convento dos Inglesinhos cuja igreja – tornada irreconhecível pela cenografia imaginosa – se tornou num espaço digno de figurar na História do Teatro Português”. Destacava ainda, o saudoso crítico, uma outra razão, pela qual o espectáculo se tornaria histórico: a personagem Cariófilo, “um gracioso que (sem deixar de ser misógino) tem da vida, do amor e do sexo uma concepção liberal, movida pelo sentimento e pelo prazer, mais do que por leis ou dogmas estabelecidos”. Falemos então de Cariófilo.
A comédia conta a história do enamoramento de Zelótipo por Eufrosina, donzela, bela, nobre e rica. Zelótipo e Cariófilo, jovens cortesãos, estão de férias em Coimbra. No início da peça, enquanto Zelótipo se encontra “malenconico”, esmagado por um amor impossível, Cariófilo “mais çáfaro que um bilhafre” ocupa-se na caça de moças do rio de “bons artelhos”. Vaidoso e zombeteiro, este “soldado pratico” dos amores que tem negócios com a alcoviteira Filtra, diverte-se contando histórias picarescas sobre freiras resgatadas pela chaminé e, quando Zelótipo descreve os olhos de Eufrosina, declara inflamado “Ahi fora eu homem pera obrar e nam contemplar”. Desobrigado de qualquer comprometimento, este garanhão português, esta máquina de conquista amorosa, que diz de si próprio “Eu sou como Cesar varão de toda a mulher”, irá desempenhar um papel crucial na peça, como conselheiro do inseguro Zelotypo. Numa das cenas, revelando a faceta donjuanesca da personagem, diz para um dos criados “Que te parece Andrade, nossas damas do paço estarão agora muyto saudosas” e especifica “e a tua amiga Ervira d’Almeida teraa jaa amigo?”. Ao que Andrade responde: “chorava quando eu laa fuy buscar as camisas de vossa merce”. Fabulosa coincidência de situações dramáticas e nomes, numa obra publicada em 1555, pois note-se, que Elvira é também a vítima de Dom Juan de Molière (1665), e personagem de Don Giovanni de Mozart (1787), e de muitos outros.
Cariófilo, alega não querer ser um mártir de Cupido “occupome logo em fazer emprego noutra e noutras”, mas apenas divertir-se “homem sou que as nam trato mais que pera minhas oras de prazer”, ilustrando a sua Filosofia de alcova através de descrições miméticas, como a da sua noite com Polinia, em que mostra a violenta impetuosidade do acto “leueya nos punhos”, a debilitada resistência à desonra através de modulações da voz, expressa por murmurantes “nam no quero, não no quero”, e culminando com a derradeira conquista, ao som de um ofegante clímax, dado que, “Finalmente fomos a monte, auenturey o resto, (…) e confessouos que fiquey sem folego”. Zelótipo acena-lhe com o castigo divino e a perda da alma, pelos mil juramentos feitos, exigindo-lhe a responsabilidade moral, mas Cariophilo não se intimida, escarnecendo da “tinhosa” Polinia que pertence agora ao número “das innocentes que se fiam de nossos enganos”, cedendo apenas em passar pela rua da “escalaurada”, para tentar a sorte uma outra noite.
Em 2008, no artigo Ventos de Espanha – La Eufrosina de Jorge Ferreira de Vasconcelos. Uma tradução espanhola pouco conhecida, dei conta que Rodrigues Lobo, em 1616, censura e altera o texto de Vasconcelos. Em contrapartida, regista-se uma maior liberdade na tradução castelhana de F. Ballesteros, de 1631, prefaciada por Francisco de Quevedo, que parece coadunar-se com as linhas de força da cultura espanhola, conseguindo fazer reaparecer alguns elementos da versão original. São eles a picaresca e o tema do amante dissoluto.
Exemplo gritante é o sacrifício da personagem don juanesca e imensamente sedutora de Cariófilo, que haveria de inspirar alguns autores castelhanos, como um D. João português, avant la lettre, precursor da universal personagem do burlador de mulheres de Tirso de Molina, e consequentemente também um dos pais do dissoluto D. Juan de Molière. A esse propósito, Xavier Fernández, salienta a dependência textual de dois textos espanhóis (Tan largo me lo fiáis e El Burlador de Sevilla), face ao texto da Comedia Eufrosina, um desenvolvimento da tese defendida por Menéndez y Pelayo em Orígenes de la Novela, de que a Eufrosina teria sido uma das fontes peninsulares do Don Juan de Tirso de Molina. Para o investigador galego “El autor del Tan Largo, y en ciertas medida el de El Burlador, tuvieram como parcial fuente de inspiración el texto de la Comedia Eufrosina, tan difundida por entonces en Portugal e en España”. De facto, Cariófilo propõe-nos uma filosofia de imoralidade amatória idêntica à que viria a ser expressa por Don Juan de Tirso meio século depois. O burlador português, seria, assim, o antecedente certo do burlador espanhol, concluindo que há, portanto, uma dependência textual “desatendida hasta ahora”, pelos historiadores da lenda de Don Juan.
E, se o texto dramático do elegante cortesão Jorge Ferreira de Vasconcelos não foi em Portugal fonte do género picaresco, justo será relembrar que, a fonte e matriz do universal Don Juan “el gran garañón de España”, poderá estar de facto, no prodigioso Cariófilo “el gran garañón” de Portugal, personagem da Comédia Eufrosina.
20 de Junho de 2012
Silvina Pereira