Em 1926, após 16 anos de regime republicano, os erros e paixões dos homens tinham arrastado Portugal a um tal estado de decadência que a sua ruína seria inevitável, se o marechal Gomes da Costa, à frente do Exército, não resolvesse pôr cobro àquela tristíssima situação, confiando a administração dos negócios públicos a homens que, dotados da maior honradez, soubessem por os interesses da Pátria acima de todas as paixões e de todos os partidarismos.O leitor do JL não está a ver mal: decidi não usar aspas limitando o texto que acabou de ler para testar a sua memória. Lembra-se de ver em algum lado aquela longa frase? Então deve ter mais de 60 anos e a suas recordações de infância estão bem vivas: ela foi retirada do
Livro de Leitura para a 3.ª classe que instruiu os meninos em idade escolar entre os anos 1930 e meados da década de 50. Para quem não consegue lembrar-se: era assim que o Estado Novo definia nos seus manuais escolares o regime que o antecedeu, a 1.ª República.A exaltação nacionalista, de um tempo há muito passado, e a tentativa de inculcar nos jovens a reverência às tradições que as veiculavam, enalteciam nos compêndios, as facetas de heroísmo, espírito aventureiro e temerário e a santidade dos nossos antepassados. Aos meninos daquele tempo pedia-se o sacrifício pela pátria – através do trabalho abnegado e obediente, mediado pelos dirigentes ou, se necessário, o próprio sangue, mas sempre com resignação. Os exemplos a seguir eram pescados na história de Portugal, enquanto paradigmas da “raça”: Viriato, D. Afonso Henriques, Santo António, D. Nuno Álvares Pereira, D. João I e a Inclítica Geração, Camões, os Restauradores, D. João V. Até ao século XVIII os organizadores dos
Livros de Leitura não consideram dignas de menção outras personagens, aparte breves referências a mulheres cuja acção – sempre momentânea – as torna estereótipos a rejeitar ou a adoptar: Leonor Teles, representado a perversidade feminina, Inês de Castro, como mártir do amor, D. Leonor e Santa Isabel como exemplos de santidade e dedicação, e ainda a Condessa Mumadona, Deuladeu Martins ou a Padeira de Aljubarrota, virilmente heróicas. Para a escola do Estado Novo, as restantes figuras da nossa história são conotados com momentos de traição, senão à Pátria, pelo menos aos costumes nacionais: tornam-se protagonistas da decadência, por não respeitarem a chamada Tradição: o marquês de Pombal, estrangeirado, fica como assassino dos Távoras (e superficialmente como reconstrutor de Lisboa); as lutas liberais, e a constituição do Portugal democrático dentro da monarquia, passam rapidamente; quanto aos fomentadores da República…”Depois de implantada a República em 1910, homens de fraca preparação para o governo ficaram à frente do País, com um Parlamento que os partidos políticos desprestigiavam.”, diz um
Livro de Leitura para a 4.ª classe que sobreviveu desde 1933 até aos anos 70, já durante a vigência do governo de Marcelo Caetano. Explica-se o porquê do desprestígio: “Portugal havia-se afastado, quase por completo, das velhas tradições lusitanas da justiça social (…) Às vezes, parecíamos mais estrangeiros do que propriamente portugueses: éramos portugueses apenas de nome.” Ora um povo que se sente unido ao seu país apenas pelo nome, estava naturalmente desorientado, não podia actuar de acordo com as suas qualidades inatas de raça e levantar o país da desmoralização moral e intelectual em que ele se encontrava – estava
fraca a forte gente. Como tinha o povo português chegado a tal estado? Acolhera ele bem a Implantação da República em 1910? A princípio sim, “(…) mas a lutas partidárias, que já vinham dos últimos tempos da monarquia, puseram o país numa situação angustiosa. Era a desordem, a desmoralização, a
bancarrota. Estávamos na decadência.” Pergunta o organizador do manual – Tomás de Barros -, esperando a resposta correcta por parte do catecúmeno, o menino que vai fazer exame da 4.ª classe: “Como conseguiu Portugal salvar-se desse inferno?” A salvação chegou com o general Gomes da Costa e a Revolução Nacional de 28 de Maio de 1926: imediatamente se implantou a ditadura, “Respirava-se já uma atmosfera de segurança e de bem-estar. Mas o desequilíbrio orçamental era apavorante.” Ao pavor da bancarrota, respondeu um professor de Coimbra, bem preparado para a governação das finanças pátrias, ao contrário dos dirigentes republicanos. Foi ele quem disse a sucessivas gerações de meninos portugueses, que leram as suas palavras, proferidas em 1934, até 1974: “Com mãos carinhosas tomámos esta pobre Nação, morta de saudades, desalentada, escarnecida, e fizemo-la reviver.”A esta hora está o leitor farto de ler citações de livros escolares e a perguntar-se onde leva esta meada. É simples: leva à consciência que os ideólogos do Estado Novo tinham – tal como os ideólogos de outras ditaduras do século XX, e de hoje… – de que a reprodução exaustiva de um conceito, por falso que ele seja, inscreve-o para sempre na mente de quem está em permanente contacto com as palavras repetidas. O leitor não concorda? Concede que a indução pode resultar com os outros mas não consigo? Pensa que passado tanto tempo, depois de quase 40 anos de democracia em Portugal todas essas frases escolares se perderam nas mentes dos meninos? Dou-lhe um último exemplo do
Livro de Leitura da 3.ª Classe, descrevendo a posteridade de Salazar e o seu nome gravado no granito da imortalidade: “E, quando, daqui a muitos anos, as gerações futuras o pronunciarem, hão-de dizer baixinho, de olhos fitos no altar da Pátria: – Foi um grande Português!” Lembre-se agora do concurso promovido pela RTP em 2007, destinado a eleger o “maior português de sempre” – o resultado, se bem se recorda foi “Salazar” – e, em liberdade, tome o peso das palavras de há quase 80 anos.
O peso das palavras
O centenário da República, que se assinala este ano, está a inspirar vários projectos nas escolas portuguesas. Mas nem sempre foi assim. Fique a saber como o período histórico entre 1910 e 1926 era estudado em pleno Estado Novo
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