Narrativa autobiográfica com uma forte carga reflexiva, se não mesmo catártica, Comprimidos azuis deixa transparecer uma emotividade tensa permanente. Muito próximo do tom de María e eu de Miguel Gallardo (sobre a relação do autor com a filha autista), ambos podem ser considerados enquanto contraponto a Fun Home de Alison Bechdel, que aborda territórios comuns (a diferença e os estigmas associados) de um modo mais analítico. O fulcro de Comprimidos azuis é a relação do autor com a sua companheira e o jovem filho desta. Quando finalmente Frederik Peeters vê um antigo interesse correspondido, o amor surge com o peso de uma terrível revelação: tanto Cati como o seu filho são seropositivos. Não se trata pois “apenas” de estabilizar uma nova relação, ajudar a superar os traumas de um divórcio, conquistar uma criança que resiste; tudo isso é verdade, mas evapora-se perante o peso da terapia antiviral, das consultas e hospitais, da luta contra a distância emocional, da imagem mental gerada pela SIDA, do medo permanente, simbolizado através de um rinoceronte branco. Medo da doença, do contágio, da reação de conhecidos, da paranoia, mesmo da maneira como Peeters vê e sente a sua pequena família.
Evitando ceder ao seu próprio peso a narrativa descreve as etapas da relação quadrupla (Frederik, Cati, filho, VIH) numa variedade de registos temáticos e estilísticos, incluindo monólogos internos, “flashbacks” e sequências onírico-metafóricas que abordam diferentes aspetos, do tratamento profilático e terapia à (re)descoberta do sexo de um modo simultaneamente inteligente e cândido, ao qual é impossível ficar indiferente. Não há mistério nenhum a esse nível (e ainda bem): Comprimidos azuis é uma história positiva, de amor, que por vezes até passa uma tangente ao melodrama típico de telefilme. Evitado, porquanto Frederik Peeters doseia bem a revelação com o resguardo, e um leitor nunca tem a sensação oleosa de estar a invadir um espaço íntimo, mesmo quando convidado. Esta é sobretudo uma história de heroísmos sem heróis, que não os presentes em pequenos gestos do quotidiano. Os que interessam, portanto.
Tal com outros autores francófonos contemporâneos (Larcenet, por exemplo), o desenho de Peeters resume de um modo muito interessante duas referências distintas. Parte de uma linha estilística descendente de Hergé (corporizada hoje por Dupuy & Bérberian, entre muitos outros), mas subverte-a com um notável traço grosso que lembra Edmond Baudoin, e que é particularmente eficaz para gerir o turbilhão de emoções que a narrativa revivida desperta.
Depois de Blankets, e embora a tradução (demasiado literal) deixe algo a desejar, Comprimidos azuis é outra bela edição da Devir. Recomenda-se a todos os que têm uma relação com a BD comparável à do filho de Cati com os remédios que o salvam. Podem parecer estranhos, mas iluminam.
Comprimidos azuis. Argumento e desenhos de Frederik Peeters. Devir, 200 pp., 25 Euros.