Recolhida agora em “O Livro dos Dias (2001-2009)” (Pianola Editores/Quarto de Jade) não se espere no entanto de Conefrey denúncias ou lamentos. A existirem estão subentendidos na descrição do dia a dia de uma comunidade que não era, nem misteriosa, nem homogénea, e que provavelmente olharia para as idiossincrasias dos outros com o mesmo horror com que as suas foram avaliadas.
O percurso iniciático do jovem aprendiz Tlacamaye é um pretexto para o notável trabalho neste livro, inspirando algumas páginas na tradição representativa dos códices pictográficos pré-colombianos. Porque Tlacamaye não é um aprendiz qualquer, o seu imenso talento coloca-o numa das posições de grande responsabilidade, a dos guardiães e cultores dos “livros pintados” onde se espelha a história do seu povo, e se combate o esquecimento. Diga-se, a propósito, que é também com este tipo de representações surgidas antes das técnica de impressão (e que neste caso sobreviveu até melhor ao nível da escultura decorativa) que se deve fazer a História da banda desenhada, e não, como se refere na maioria dos trabalhos, meramente a da sua Pré-História. Fugindo à linearidade habitual, Conefrey usa a estrutura da arte pré-colombiana para desafiar o leitor, vincando de forma indireta estarmos perante uma outra realidade, uma outra interpretação do Mundo, espelhada numa outra interpretação da página em banda desenhada. As representações dos mitos cósmicos da criação são particularmente conseguidos e, na verdade, o livro transcende-se em dois momentos distintos: no retratar “banal” do quotidiano (embora a natureza poética do texto tenda aqui a ser menos eficaz), e na recriação do contexto mitológico; mostrando, sobretudo, como o segundo inevitavelmente informa o primeiro. “O Livro dos Dias” também não foge a contextualizar conflitos, estruturas de poder ou os incontornáveis sacrifícios humanos, mas sempre enquadrando todos os elementos num retrato mais amplo, evitando o sensacionalismo.
Tal como já referido a propósito de outros trabalhos de Diniz Conefrey, o uso dramático da cor é uma das suas grandes qualidades, uma ferramenta narrativa usada com um virtuosismo sem paralelo a nível nacional, com afinidades, por exemplo, com o melhor Lorenzo Mattotti. A intensidade e o pontuar das cores quentes e solares com tons mais noturnos são uma experiência dentro de um livro que até tem uma “leitura” alucinatória possível, baseada apenas na pauta dinâmica que a cor constrói.
O tempo e a preparação colocados neste trabalho, que incluiu uma estadia no México, sentem-se em cada pormenor, desde a indumentária e adereços às grandes vistas panorâmicas que revelam a arquitetura das antigas cidades. Talvez algum desse trabalho prévio pudesse ter sido incluído, na forma de dossiê, ou memória descritiva. Mas talvez também esse material seja mais adequado para a excelente exposição que este projeto poderia gerar. Até porque se lamenta mais uma vez que a distribuição de uma obra tão importante seja tão limitada (pode ser adquirida em www.quartodejade.com). De qualquer modo o importante é sublinhar “O Livro dos Dias” como um dos livros do(s) ano(s).
O Livro dos Dias (2001-2009). Argumentos e desenhos de Diniz Conefrey. Pianola Editores/Quarto de Jade (http://www.quartodejade.com). 128 pp., 22 Euros.