Li na imprensa que o nosso primeiro-ministro abriu as suas portas para uma comemoração natalícia com os mais novos em que foi encenada uma versão da história da cigarra e da formiga, com o fim de enaltecer a importância da poupança.
Nesta quadra tão dada a fábulas morais senti (também eu!) a necessidade de escrever, ou melhor, reescrever uma das histórias que sempre me intrigou:
Estamos em pleno Verão-da-vida, e a formiga trabalha diligentemente para assegurar o seu futuro: são mestrados seguidos de doutoramentos seguidos de pós-doutoramentos, pesquisas e ensaios dedicados a assuntos de interesse formigal, ponderação de estatísticas com cálculo de probablidades e medições de risco. São muitas horas, dias, meses, sem refeições de jeito, sem vida sexual (sim, a internet não conta…) coroadas, na chegada do Inverno, com uma prateleira elevada numa torre, até quem sabe? um lugar de curadora numas prestigiadas termas. Com o auxílio de um banquinho, lá chegou às dita prateleiras onde não se passa nada.
A cigarra, por outro lado (será que se nota assim tanto por quem é que eu estou a torcer?) passou o Verão a cantar, a tocar, a dançar: correu meio país, meio mundo, provou os néctares do amor, encantou gentes, enfureceu outras. O Inverno apanhou-a numa esquina, a ressacar de tanta folia com traços de uma bronquite provocada pelo seu irmão inseparável, o cigarro. Só que – como sempre acontece nas histórias que metem animais – o inesperado acontece. Surge na figura de um produtor artístico escandinavo que ouvira falar maravilhas das suas cantorias e resolve contratá-la para fazer uma digressão internacional, onde conhecerá a glória, em auditórios aquecidos, pois está claro.
Poderia continuar esta história contando, por exemplo, que a cigarra passaria de moda e acabaria consumida pelas drogas e pelo alcool, como sem-abrigo residente das arcadas do Banco de Portugal. E como a formiga, depois dos proveitos acumulados ao longo dos anos, mudaria de vida na meia idade e compraria um veleiro para dar a volta ao mundo recolhendo donativos para organizações de solidariedade social…
Mas não, vou-me mesmo ficar no encontro da cigarra com o sucesso, e esperar que esta versão possa um dia ser adaptada a livro, integrar o plano nacional de leitura, e vir a ser dramatizada na festa de natal de um primeiro-ministro futuro que seja menos formiguinha.