Rute foi posta em liberdade cerca de 48 horas depois das declarações do youtubista terem sido divulgadas. O próprio Malasarte se encarregou de ir buscá-la à cadeia, recusando de forma inesperada a minha companhia.
– Ela não quer lá ninguém, não posso contrariá-la – desculpou-se ele.
– Nem a mim? – insisti.
– Não, ninguém – reafirmou.
Que estranha atitude seria aquela? Será que, depois de tanto tempo enjaulada, Rute tinha perdido a capacidade (ou o gosto) de se relacionar normalmente com as pessoas? Será que estava deprimida? Doente? Será que não tinha saudades de ninguém? A resposta a estas questões era um mistério, mas não havia outra solução senão esperar até ao dia seguinte, pois o advogado deixara bem claro que ela não queria ser incomodada absolutamente por ninguém naquela tarde.
Na manhã seguinte, em vez de lhe telefonar, resolvi ir directamente à casa dela, que era praticamente ao pé da minha, mas na zona chique do Restelo. O portão estava aberto, a relva orvalhada e pingos de rossio choveram pela minha cabeça abaixo quando tentei afastar do caminho as pernadas de uma laranjeira. Apesar deste incidente, que me fez soltar um palavrão e me empurrou da calçada por onde caminhava para a areia molhada, deixando-me com os saltos completamente atascados, dei por mim a ter saudades da moradia que tinha às moscas na Margem Sul. Se pudesse pegar nela e trazê-la para ali, não hesitaria, mas deixar a cidade é que não. Até parecia um desperdício que Rute morasse ali sozinha. Um jardim daqueles pedia crianças, pelo menos três, umas churrascadas, um marido para cortar a relva, uma família, enfim.
A cozinha dela parecia a do Palácio da Vila, só que mais moderna. Até eu, que nunca tive uma relação de grande proximidade com o fogão, seria capaz de me converter numa cozinha assim. A primeira coisa em que me iniciava era logo na confecção de bolos, talvez até de bolinhos secos. Talvez me dedicasse também às compotas. Será que se podia semear mirtilo no jardim? O mirtilo é uma espécie de uva silvestre, tão rara aqui no Sul. Que saudades que eu tinha das framboesas, das groselhas, das amoras, das bagas silvestres da minha Ucrânia. Se calhar, estava na hora de ir até Lviv. Não, que agora metia-se o Outono. Mas na próxima Primavera, lá pelas vésperas de São Gregório, havia de voltar à minha pátria, sim senhor.
Para que quereria Rute uma casa tão grande? Eu também gostava de espaço à minha volta, mas não de espaço vazio. Para viver numa casa assim, eu teria de a encher de gente, de filhos. Mas claro, Rute tinhas as suas heranças e não havia de se desfazer delas só porque era solteira e sozinha. Subi os degraus que davam para a entrada principal e ia para tocar à campainha, quando a porta se abriu, como se tivesse adivinhado a minha chegada. Era Libério.
– Entra, Nádia, entra – disse ele.
– Então onde está a Rute? – perguntei, chegando à sala.
– Não está – respondeu.
– Então onde está? – perguntei.
– Foi para Nova Iorque esta madrugada – disse ele.
– Mas está tudo bem com ela? – perguntei, surpreendida.
– Está, mas diz que tinha muitas saudades daquilo e lá foi.
Antes assim, pronto. Só esperava que ela voltasse, caso contrário não saberia que rumo dar à agência e com Másha desejosa para abrir o seu negócio, não seria fácil manter a porta aberta. – Queres um chá? – perguntou ele precisamente no momento em que estava para lhe dizer que assim sendo me ia embora. Um chá. Não sabia se queria ou se não. Não nos víamos há tanto tempo e os desaforos tinham sido tantos e tão grandes que agora nem sabia se ainda valeria a pena estar com conversas com ele.
– Então, é chá ou café? – insistiu ele.
– Pode ser café – respondi, achando que o melhor era ficar alerta para não me deixar hipnotizar mais uma vez.
Trouxe o café e sentou-se numa poltrona à minha frente. Olhava para mim como se se tivesse esquecido completamente das pelejas e das ofensas e dos beijos e da chama e de tudo o que tínhamos vivido juntos. Era como se me conhecesse apenas vagamente, contemplando-me com moderação e delicadeza.
– Vou consagrar a minha vida à Igreja – disse ele. – A partir do mês que vem, começo a ministrar sermões. Se quiseres, vem assistir.
Já lá estava e tudo. Tinha ouvido nas notícias que ele se estaria a preparar para vir a ser o chefe da Igreja de Deus dos Santos dos Últimos Dias de Lisboa, e que se encontrava no Brasil em formação teológica intensiva, mas pensei que aquilo era hipérbole jornalística. Afinal…
– Pensava que ainda pudesses voltar ao futebol – disse eu.
– Não, essa etapa está morta e enterrada – disse ele.
– Mas estás feliz?
– Estou em paz, que é praticamente a mesma coisa – disse ele, muito suavemente.
A serenidade, as palavras muito cadenciadas, as pausas nos sítios certos, tudo nele me parecia estranho e renovado. Será que tinha tido aulas de teatro? Até respirava de maneira diferente, de forma educada. Tinha outra expressão corporal, ou o que era. Seria do cabelo, mais curto e penteado? Não… O olhar é que era outro. Tinha perdido a arrogância. E o tronco? Mais direito era impossível. Nunca o tinha visto assim sentado, parecia um mestre Zen em pose de meditação.
– Então, e continuas com a brasileira? – disse eu, descendo à terra.
– Sim, com a Regina – disse ele, lançando-me um olhar que não era nem altivo, nem desafiador, nem tímido, nem colérico, mas apenas amigável, para tornar tudo ainda mais insólito.
– E a Adélia, que é feito dela? – perguntei.
– Os programas dela estão a ser um êxito na América, e tudo graças ao azeite Andorinha, que diz que opera milagres em tudo o que seja doença inflamatória do intestino e não só…
Pois… Por morrer uma andorinha não acabava a Primavera, isso via agora eu. Até me parecia impossível que tivesse chegado a perder a vontade de viver por causa daquele melro. Andorinha. Gosto de andorinhas. Fazedoras do bem e protégées das forças divinas, fêmeas de um só macho e mães de numerosos filhos. Apaixonadas e amadas, defensoras da humanidade desde a Arca de Noé. O amor, quando o conhecem, é para a vida e as suas alianças matrimoniais só se desfazem perante a morte. Sim, quem me dera ser uma andorinha.