– O minarete ficou em primeiro lugar! – disse Másha irrompendo pelo meu gabinete adentro, numa grande euforia.
– Não acredito…
– A sério, o Nassim ligou-me agora mesmo, vem amanhã do Cairo para celebrar.
– Essa é boa… – disse eu, espantada por saber que o filho do imã continuava a dar-se com ela.
– Quem é que podia adivinhar um coisa destas? – disse ela.
– Podes crer – respondi, tentando perceber como é que ela teria fisgado o príncipe do Egipto.
– Imagina, pediu-me em casamento…
– E tu? – perguntei.
– O que é que achas, Nádia? Aceitei é claro.
– Vê lá não seja um daqueles casamentos temporários dos muçulmanos, o zawaz al mut’a, ou lá o que é, que servem apenas para ter sexo. Depois, para repudiarem a mulher basta enviarem uma mensagem sms com a palavra “talaq”, divórcio, e pronto, assunto arrumado.
– O Nassim não é desses e nós havemos de superar todas as dificuldades com amor e respeito. – afiançou.
– E a distância, como é que estás a pensar superá-la? Estás a pensar morar em África?
– Não, ele muda-se para Lisboa, em Setembro!
– Sim senhora… – disse eu, tentando mostrar-me desinteressada.
– Tenho a impressão que a partir de agora é que vou começar a ser feliz a sério… Não apenas por ter encontrado o Nassim, mas também porque em breve estarei em condições de abrir a minha loja – anunciou.
– Mas que loja?
– Sabes que tenho andado a frequentar um curso de Estilismo, não sabes?
– Não – Que me lembrasse nunca tinha ouvido tal coisa.
– Então, mas eu contei-te, tu é que não ligas nenhuma ao que te digo.
Talvez. Sim, se calhar era capaz de me ter dito qualquer coisa, mas o mais certo era eu não ter feito caso.
– Pensava que te sentias bem aqui na agência… – disse eu.
– E sinto, mas ser estilista sempre foi o meu sonho – respondeu ela, soltando o cabelo, como se fosse a estrela do anúncio publicitário do melhor champô do ano.
Estilista. Mas e o tempo? Onde fora ela arranjar disponibilidade para aqueles projectos todos?
Tinha a parte administrativa da agência quase toda às costas, preparava e assistia a reuniões de negócios, fazia prospecção de mercado, frequentava cursos em horário pós-laboral, não tinha automóvel nem empregada e nem sequer morava em sítio propício ao desenvolvimento da criatividade artística, e agora desenhava roupas e preparava-se para lançar a sua própria marca? Como? Precisava de ousadia, talento, sentido empresarial e auto-confiança. Será que possuía todos os ingredientes para embarcar numa aventura destas ou seria o futuro marido a patrocinar as suas ambições?
– Então, o Nassim é que te vai dar o dinheiro para a loja?
– Achas? Desde os 18 anos que trabalho e até hoje nunca fui pessoa de grandes gastos… É claro que tenho capital para começar o meu negócio.
Mas que tempos fascinantes e imprevistos. Quem é que podia supor que o minarete de Odivelas fosse tão magnífico ou que Másha fosse tão talentosa? Já para nem falar da prisão de Rute nem da pancada de Libério.
Sim, Másha sempre gostara de costurar. Antigamente até me chegara a fazer umas peças de roupa, ainda que eu não lhas tivesse encomendado. Embrulhara-as em papel de seda e colocara-as no saco de pano-cru com as iniciais do nome dela bordadas a dourado. Eram tecidos grosseiros, que não me despertaram o interesse e nem sei que sumiço terá levado essa roupa. Bem, o gosto também se educa. Para quem não gastava um tostão, ela até costumava andar bem vestida, se calhar era indumentária de fabrico próprio.
– Queres dar uma vista de olhos na minha colecção de fim de curso? – pergunto ela, cheia de entusiasmo.
Foi buscar um álbum e sentou-se ao meu lado. Fiquei impressionada com o romantismo e a sensualidade dos modelos. As silhuetas eram todas estreitíssimas, de contornos anatómicos.
– Gosto das formas e das cores… – disse eu.
– Adoro a paleta dos castanhos toupeira e ouro claro – respondeu ela.
– E os materiais, são o quê? – perguntei, olhando para uma foto repleta de variados quimonos.
– Fios rústicos, lã, algodão, linho…
Ninguém é perfeito, pensei. Mas pronto, a colecção era dela e ela também tinha direito às suas opões artísticas.
Ainda naquela tarde recebi um convite da mulher do imã para tomar chá e lá fui eu de novo ter com ela ao Senhor Roubado. Encontrei-a radiante. Pudera. Era o prémio, era o marido absolvido do crime de suicídio, era o fim do luto, o regresso do filho, só coisas boas a baterem-lhe à porta.
O assunto que levara ao convite desta feita era o seguinte: o milionário saudita pretendia vir a Odivelas para conhecer a mesquita e entregar-lhe pessoalmente o prémio, e ela, influenciada pelo filho, queria aproveitar a ocasião para fazer uma festa das Arábias, aberta à comunidade, com o intuito de mostrar aos leigos as maravilhas da cultura islâmica, esperançada em dar o seu singelo contributo para desfazer mitos e preconceitos. De mim, desejava apenas ouvir uma opinião:
– Será que a Rute leva a mal?
– A Rute gosta é de ver toda a gente bem-disposta e feliz.
– Por minha vontade, fazíamos a festa só quando ela saísse da cadeia, mas o príncipe tem uma agenda dificílima e o Nassim acha melhor aproveitarmos a vinda dele, para termos mais cobertura mediática. Afinal, um príncipe é sempre um chamariz para qualquer evento…
– Mas qual príncipe?
– O Waed Bin-Abdulá!
– Mas ele também é príncipe?
– Olha, não sabias? Quarenta anos, viúvo, bem-parecido, amigo das artes e do saber… – E multimilionário, não se esqueça, acrescentei para comigo.
As celebrações arrancariam nas instalações do Fórum Fátima, mãe dos sábios imãs de Meca,
com uma curta conferência sobre arte islâmica em Portugal, a que se seguiria a entrega do prémio e logo depois um concerto de vinte e cinco minutos com Najwa Karam, uma das vozes de ouro da canção árabe. Depois, vinham os comes e bebes, mas no jardim, que se estendia das portas do fórum à freguesia da Ramada, por mais de um hectare de terreno, que era pertença da mesquita ia para dois anos.
– Sabe o que é que devia fazer? – disse eu. – Apelar às pessoas para virem vestidas à árabe…
– Ó Nádia, não quero fazer um Carnaval… – replicou.
– Quem é que não gosta do mundo da fantasia, Leila?
– E se me aparece alguém vestido de odalisca?
– Aparece nada, as pessoas têm bom senso!
– Bem, é capaz de não ser má ideia. De certo modo a cultura islâmica sempre despertou um certo fascínio nos Europeus, quer dizer, pelo menos até à morte do comunismo – disse ela.
– Até à morte do comunismo, como?
– Então, antes o bicho papão não era a União Soviética? – respondeu. – Agora somos nós…
– Acho que tem é de arranjar uma relações públicas eficiente, que lhe trate dos assuntos relacionados com os media e o público… – aconselhei.
– Isso não será um gasto desnecessário? – disse ela.
– Desnecessário é a Leila correr o risco de ser mal interpretada e depois ter de pagar uma factura ainda mais elevada.
– Tens razão. Vamos lá fazer disto um acontecimento inesquecível! – disse ela.
– Então, e que me diz do seu filho e da Másha? – atirei, picada pela inveja.
– Eles é que sabem – disse ela.
– Ela nem muçulmana é… – disse eu.
– Isso é um pormenor de somenos – retorquiu. – O que importa na verdade é o amor.
– Acha que o amor tudo pode?
– Se não pode, é porque não é amor – disse ela.
Sentia-me cada vez menos qualificada para debater o amor e por isso calei-me.
– Põe-te mas é bonita que o príncipe até pode engraçar contigo, especialmente agora que tens o cabelo mais comprido…. – disse ela, adivinhando a solidão que ia no meu coração.
– Quero lá saber do príncipe! – disse eu.
– Então, uma menina tão bonita a desdenhar? – censurou ela jocosamente.
Waed Bin-Abdulá podia ter o role de qualidades que ela enunciara e até merecer o cognome de perfeito, mas eu não me estava a ver apaixonada por um homem do deserto, por mais predicados que ele tivesse.