Quando Malasarte telefonou ao técnico superior do sistema interno de videovigilância de Vale de Judeus, convocando-o para uma pequena reunião ao fim da tarde, a primeira reacção dele foi recusar dizendo que não tinha absolutamente nada a acrescentar às questões do advogado e que por isso não pretendia reunir-se com ele nem naquela tarde nem nunca.
– Nesse caso – disse Malasarte -, não me resta outra opção senão desbobinar tudo o sei ao telefone e depois seguir os trâmites legais de modo a conseguir a sua condenação por…
– Ó doutor, tenha lá calma consigo, que exaltados não vamos a lado nenhum! Deixe estar que eu mais logo passo aí, pronto!
O encontro ficou marcado para o fim do dia. O advogado foi à polícia requerer a instalação de microfones, de modo a registar a conversa delatora que esperava ter mais tarde com o técnico, mas o juiz não deferiu a autorização e a instalação ficou sem efeito, o que acabou por não prejudicar em nada os planos de Malasarte, uma vez que o técnico vinha decidido a confessar toda a verdade e a fornecer-lhe provas irrefutáveis, que corroboravam em cem por cento os factos anteriormente postos a nu pela sua amante.
Deviam ser umas seis da tarde quando o técnico tocou à campainha do escritório. Vinha transpirado e ofegante, com bolhas de água na testa e ilhéus de suor projectando ziguezagues molhados por debaixo dos sovacos da camisa.
– Está um calor que não se pode – disse assim que Malasarte lhe abriu a porta.
– Dizem que é por causa da camada do ozono – disse o advogado.
– Ó doutor, isto sempre houve calor! Há cinco mil anos até havia elefantes na Arrábida, e nessa altura ainda ninguém se tinha lembrado do buraco do ozono, pois não? – retorquiu o técnico, entregando-lhe um CD.
– Que é isto? – perguntou Malasarte sem querer acreditar na sua sorte. – Não me diga que são as imagens do…
– Exactamente – respondeu o outro.
– Pensava que as tivesse apagado e não as pudesse recuperar… – disse o advogado.
– Apaguei-as, mas antes fiz esta cópia de segurança.
Malasarte encaminhou o técnico para o seu gabinete e disse à secretária que não queria ser incomodado e ela, ao contrário do que costumava fazer, não o interrompeu, pois estava a ver a sua telenovela favorita na televisão e mal conseguia dar pelo que acontecia à sua volta.
– Então, para que fez uma cópia tão comprometedora? – perguntou o advogado. – Não me diga que queria chantagear o seu cunhado…
– Deus me livre, doutor! Foi daquelas coisas que uma pessoa faz sem saber porquê, ou empurrado por uma mão divina ou lá o que é… – disse o técnico.
– Sabe que pode ser condenado por cumplicidade na morte do imã, não sabe? – perguntou o advogado.
– Conto consigo para que isso não me venha a acontecer – respondeu o técnico.
– A que é que se deve a sua mudança tão repentina de atitude? Ainda esta manhã não queria colaborar comigo e agora até me traz uma prova de cuja existência eu nem suspeitava.
– Estive a falar com a minha colega e resolvi seguir o conselho dela. O meu cunhado pode ter lá as razões dele, mas daí até andar a chamar nomes às outras pessoas…
– Bem, se calhar é melhor certificarmo-nos do conteúdo deste disco – disse o advogado pegando no CD. – Isto dá para ver no computador?
O técnico fez que sim com a cabeça e depois seguiram-se vinte minutos de pura tragédia grega, com momentos hilariantes à mistura. Isto, a crer nas palavras de Malasarte e tendo em conta que pessoa mais dada à pândega do que ele é difícil de encontrar.
O filme começava com uma frase, a itálico, que ocupava toda a parte central do monitor e dizia:
“O take oculto e a morte do mártir.”
– Mas que folclore é este? – perguntou o advogado impacientemente, girando o monitor na direcção do técnico.
– Todo o homem que morre à sexta-feira, no Islão, é considerado mártir, ainda por cima assassinado, e tendo escrito as palavras do profeta… Oh, oh, tem tudo para ser beatificado, aquele imã é o que tem – disse ele.
– Mas por que raio é que você resolveu dar título a isto, homem? – perguntou Malasarte. O técnico encolheu os ombros e sorriu timidamente, deixando-se escorregar pela cadeira abaixo.
O filme propriamente dito começava com o imã deitado na tarimba a tossir. O guarda aproximando-se com o chá nas mãos. O imã dá um pulo, sobressaltado. O guarda diz, num timbre tão doce que parecia açúcar:
– Não se assuste, trago-lhe aqui um chazinho com mel a ver se essa tosse acalma…
– Não era preciso incomodar-se, senhor guarda.
– Ora essa, temos de ser uns para os outros.
– Que alma tão delicada a sua… Que Alá ilumine o seu caminho e lhe conceda, a si e à sua família, as melhores graças divinas.
– Você passa os dias sentado no chão frio, depois não é de admirar que tussa que nem um cão. Até se me parte o coração de o ouvir ganir assim! Vá, tome lá este chazinho, a ver se isso arrebita – disse o guarda.
O imã aceitou ou chá e agradeceu.
– Não tem de agradecer coisa nenhuma – respondeu o guarda. – Não lhe dei nada que você não merecesse.
– Muito me apraz que o senhor assim pense – disse o imã. – Sou um pobre inocente abandonado à justiça dos homens e se passo tantas horas no chão é a rezar, talvez Alá me perdoe por não ser capaz de entender esta detenção… Pergunto-me se terei mesmo de pagar por crimes que não cometi e receio pelas repercussões que tudo isto poderá ter na minha família, nos fiéis…
– Vai ver que tudo se há-de resolver mais depressa do que espera – respondeu o guarda.
– Não sei, não tenho bons pressentimentos… – disse o imã.
– Olhe, tome este comprimidinho – disse o guarda, esticando a mão – que há bocado, com a conversa, até me esqueci de lho dar. Para a tosse, não há melhor remédio.
– Não costumo tomar medicamentos – disse o imã, recusando a cápsula.
– Ó senhor, não me faça essa desfeita! – disse o guarda. – Engula lá esta bodega se faz favor!
O imã pegou na cápsula e, ou porque não quisesse melindrar o guarda ou porque realmente se quisesse ver livre daquela tosse, levou-a devagarinho à boca, enquanto o carrasco seguia todos os seus movimentos com uma atenção fora do normal.
– Vamos lá a ver se funciona – disse o imã, engolindo a cápsula e devolvendo a chávena ao guarda.
– Oh, se funciona… – disse o guarda, cheio de alegria.
O que veio a seguir de engraçado nada teve e condizia na íntegra com o quadro anteriormente retratado a Malasarte. O final da fita parecia remeter, porém, para a comédia e estava artisticamente sinalizado com a frase: “Para lá todos caminhamos…”, e depois, no canto inferior direito do monitor, “Fim”, escrito com umas letras tão minúsculas, que quem estivesse a mais de cinquenta centímetros do PC dificilmente poderia decifrar aquela palavra.
– Você tem mesmo a mania que é artista, não? – disse o advogado retirando o disco do computador.
– Então, gosto de polir as minhas imagens, o que é que quer?
O técnico jurou a pés juntos que ia continuar a colaborar na defesa de Rute e que outra solução não tinha, agora que sabia que o cunhado andara a difamar a sua amiga. Só não estava, dizia ele, era para ir bater com os costados à prisão, pois o único crime que cometera fora o de ter tido pena de um familiar que tanto vira sofrer com a perda do filho. O advogado também fez as suas juras:
– Esteja descansado que farei os possíveis e os impossíveis para o safar.
Despediram-se cheios de mesuras e Malasarte não podia estar mais satisfeito. Foi para casa, fez várias cópias do CD, enviou-as por e-mail a amigos e colegas, ligou para o seu contacto na imprensa diária e mais tarde, quando se foi deitar, adormeceu quase de imediato, que era coisa que ele não se podia vangloriar de lhe acontecer com frequência.
Na manhã seguinte, a manchete do Correio da Manhã era “Imã assassinado por guarda prisional”, e em antetítulo a pergunta “Será que Abu-Nassim era mesmo terrorista?”
Assim que vi o jornal, liguei a Malasarte:
– Porque é que não passa antes por aqui para irmos almoçar? – desafiou, antes de eu ter tempo de lhe dar os bons-dias.
– Queria ir à manicura à hora de almoço…
– Não me diga que põe as vaidosices à frente dos assuntos da Rute…
– Se soubesse o estado em que tenho as mãos, não dizia isso!
– Estou a ver que o Rui é que tem razão…
– Como assim?
– Disse que você era uma peneirenta…
Peneirenta? Nem sabia o que aquilo queria dizer. Mas está bem. Daquela cabeça, podia vir tudo e mais alguma coisa. Aceitei ir almoçar com ele, levada pela curiosidade de saber novidades de Libério.
Ao meio-dia em ponto, depois de ter acabado uma penosíssima reunião com uma marca de cosméticos que não quis de maneira nenhuma renovar o contrato de longa data que tinha com a agência, levantei-me da secretária com a intenção de esganar quem me aparecesse à frente. O primeiro a habilitar-se foi Malasarte.
– A sua assessora disse que eu podia entrar…
Rica vida, sim senhora. Assessora? Mas que faria ele ali? Afinal, não tínhamos combinado que eu passava no escritório dele por volta da uma da tarde?
– Então, senhor Malasarte? – disse eu, fazendo uma força sobrenatural para me conter. – Não tínhamos combinado que eu ia ter consigo?
– Menina Marchenko, quer acompanhar o repasto de um homem solitário, amenizando-lhe a existência árida? Vamos ali ao Bolshoi? – respondeu, ignorando a minha pergunta.
Já que era para ir ao Bolshoi, que fôssemos imediatamente, pois dali a meia hora não se devia poder lá entrar com tanto deputado esfomeado. Mal chegámos, pedimos o mesmo de sempre, seguindo o ritual do costume e passando pelos inevitáveis afagos da dona do restaurante.
– Esta georgiana dá cabo de mim – disse Malasarte com os olhos presos ao traseiro dela.
– Então, conte lá, que conversa era aquela da peneirenta?
– Ah… – disse ele recostando-se o mais que pôde na cadeira e acariciando a sua barriga de Sancho Pança. – É que ele estava a queixar-se da Adélia o ter deixado e eu disse que você também fazia um par jeitoso…
– E então?
– Que não! Que você é um pernilongo, que tem a mania que é mais do que as outras, que é uma peneirenta, e que ele não a quer nem carregada de ouro…
– Estamos quites, que eu também não o quero para nada!
– Faz bem, Nádia – disse ele. – O Rui ultimamente não anda bom do juízo.
– O repolhinho está bom? – perguntei, vendo-o devorar o prato acabado de chegar à mesa.
– Divinal! – disse ele com a boca cheia.
– E o testemunho do técnico sempre vai servir para libertar a Rute ou não? – perguntei.
– A Rute não está presa por ter matado o imã, mas com a revelação deste assassínio a teoria da acusação começa a ficar um bocado frouxa e, tremelique aqui, tremelique ali, vai para o maneta não tarda nada…
– Finalmente, uma boa notícia! – regozijei.
– Deus tarda, mas não falha, menina! – disse ele.
– E será que o imã era inocente? – perguntei.
– Não me admirava nada, mas isso não é coisa que me tire o sono – disse ele.
– Então, o que é que lhe tira o sono, Malasarte?
– Olhe, a solidão, por exemplo. Se pelo menos tivesse filhos, mas não. Chego a casa e só encontro é paredes à minha espera. Se soubesse o que sei hoje, tinha-me casado com uma mocita da Lousã, que chorou baba e ranho quando vim para Lisboa, tinha-a trazido comigo e pronto – disse ele.
– Não a trouxe porquê?
– Pensava que podia arranjar melhor… E assim se passaram os anos, e eu sempre à espera de encontrar uma cada vez melhor do que outra. Para quê?…