– Ainda bem que veio sozinha – disse Malasarte quando lhe fui levar o dicionário para Rute.
– Então, porquê? – perguntei.
– Queria contar-lhe uma coisa, mas ao pé do Rui uma pessoa até tem medo de abrir a boca. Desde que anda metido com os chanfrados dos mórmones nunca mais foi o mesmo, o rapaz.
A revelação que se seguiu parecia uma bomba. O imã tinha sido mesmo assassinado. Como se não bastasse, pelo que o advogado dizia, o autor do crime fora, e esta era a parte que mais me espantava, o guarda prisional de serviço à sua cela, na madrugada em que o delito ocorrera.
– Mas porquê? – perguntei, tentando perceber o motivo do guarda.
– O filho morreu-lhe naquele atentado à bomba que houve há dois anos no metropolitano de Londres, não se lembra? – disse Malasarte.
– Mas o que é que isso tem a ver com o imã?…
– Então, não dizem que ele foi o cérebro dessa operação?
A acreditar nas palavras do advogado, assim que soube que o imã seria colocado em Vale de Judeus, o guarda, sedento de vingança, terá começado a matutar num plano para lhe acabar com a vida, o que acabou por fazer ao nonagésimo sétimo dia de cativeiro, aproveitando-se do valente resfriado que o clérigo tinha apanhado. A cela era toda de betão, as paredes, o tecto, o chão, tudo. Por isso não era de admirar que o imã, que passava horas a fio sentado no chão, virado para Meca, a rezar ou simplesmente em meditação, se tivesse constipado. Tossia que se fartava. Na sua última noite de vida, o guarda, chegando-se às grades da sua cela com falinhas mansas e uma chávena de chá de doce-lima com mel e uma cápsula, disse:
– Trago-lhe aqui uma mezinha, que me dá dó vê-lo ganir assim.
A visita do guarda, àquelas horas da madrugada, terá, imagino eu, causado alguma surpresa ao imã, mas creio que depressa se terá regozijado ao ver que estava perante uma alma compassiva e talvez tivesse até começado a filosofar sobre a propensão bondosa da natureza humana. Assim, não é de admirar que tenha aceitado de boa vontade a fatal oferenda, pois a cápsula o que continha era nada mais nada menos que sete gramas de cianureto de potássio.
Cerca de meio minuto depois de ter ingerido a cápsula, o imã, ou porque começou a sentir os primeiros sintomas do envenenamento ou porque, olhando para o assassino, terá pressentido a cilada que lhe fora armada, meteu a mão à boca e tentou vomitar. Logo a seguir, correu esbaforido para a pequena mesa de ferro, situada ao lado da sua tarimba, e lançando-se sobre papel e uma caneta, escreveu: “Não há outro Deus senão Alá”, e num zás caiu ao chão inconsciente e aí permaneceu cerca de quinze minutos num estado entre a vida e a morte, até que deu um grande ronco e se apagou definitivamente. A seguir, o guarda prisional, pegando nas chaves, abriu a cela e, calçando um par de luvas, começou a limpar os vestígios do crime. Retirou o anel do dedo do defunto, tirou o diamante lá de dentro e engoliu-o. Depois, pulverizando o interior do anel com o veneno, voltou a enfiá-lo no dedo do defunto e saiu da cela. Antes de sair, porém, foi examinar por precaução o que o imã tinha escrito e, talvez pensando que não havia nada a temer, deixou ficar o papel em cima da mesa.
Tudo isto tinha sido gravado pelo circuito interno de televisão e contado com a benevolência do técnico de serviço, que era cunhado do assassino. Segundo o advogado, o técnico comprometera-se a apagar a parte do disco rígido que continha estas imagens, coisa que realmente fizera. No entanto, consumido pelos remorsos, cheio de dúvidas em relação à culpabilidade de Abu-Nassim e sequioso de conforto, terá ido desabafar o sucedido com a amante, que era também sua colega de trabalho e inimiga secreta do guarda prisional, desde que o ouvira chamar-lhe vaca numa conversa que ele nem sonhava que ela escutara. Aproveitando a informação do amante para se vingar do cunhado dele, mas sem querer ser metida ao barulho, a mulher terá procurado Malasarte, na esperança de que ele fosse capaz de engavetar o seu ofensor.
– Temos de mandar prendê-lo! – exigi, ainda boquiaberta com o relato de Malasarte.
– Por enquanto, não podemos – respondeu ele -, não temos provas.
– Então e o técnico que gravou tudo?
– Esse não quer falar…
– Então, assim de que nos vale saber a verdade?
– Deixe-me pensar…
Enquanto ele pensava, fui andando. Mas não sem antes ter de inventar um role de desculpas para me livrar de ir jantar com ele. Percebia que se sentisse só, como tantos outros homens que chegam à sua idade sem nunca se terem dedicado verdadeiramente a ninguém, mas não tinha paciência para ser sua muleta naquela noite e, para mais, já tinha planeado o meu jantar: kefir e torradas com azeite e pasta de alho, a ver se purificava o sangue e fustigava os demónios. Plano furado. Ao chegar a Belém tive uma surpresa que acabou por me tirar por completo o apetite.
Debaixo do alpendre do meu prédio, encostado a uma coluna, estava um homem com aparência de trinta e poucos anos, corpulento, moreno, casaco de cabedal aberto no peito e mãos nas algibeiras. Assim que o vi, tive a sensação de que o conhecia de algum lado. Ignorando-o, meti as chaves à fechadura e preparava-me para entrar no prédio, quando ele disse, em russo:
– Então, Nádia, já não me conheces?
No exacto momento em que ele disse estas palavras, dando o primeiro passo na minha direcção, percebi de quem se tratava. Era Andrey, o investigador georgiano cujos serviços tinha contratado através do meu advogado, na tentativa de descobrir como é que a Telecomunicadora se tinha apoderado da minha fotografia.
– Olha, ainda és vivo?
– Podemos conversar um bocadinho?
Demos meia-volta pelo Jardim Vasco da Gama e depois sentámo-nos num banco virado para o
McDonald’s e ele disse:
– A ver se este não vai também pelos ares…
– Era o que faltava – respondi.
– Já sei quem é que rapinou o retrato, mas como não pude cumprir com os prazos, sente-te livre para declinares a informação.
– Estamos a falar de quanto?
– Dadas as circunstâncias, vendo-ta por um preço simbólico.
– Quanto?
– Três mil euros.
– E achas que vale a pena? – perguntei por perguntar, pois aquele valor não era nada comparado com a exorbitância que o meu advogado me tinha querido cobrar.
– Se vale a pena? – repetiu ele. – Bem, se estiveres disposta a chatear-te…
Para masoquista, tinha eu jeito, disso não tinha dúvida nenhuma. Fechámos negócio. Passei-lhe o cheque, ele passou-me o DVD.
– Vê, ficas a perceber tudo – afiançou ele.
Vi, mas mais valia que não tivesse visto. Filme sórdido (e tórrido). Paulo e o director de Postos Públicos numa escaldante sessão de porno gay, na cave da nossa moradia, onde o falecido tinha uma espécie de sala de relaxamento, equipada com todos os apetrechos, desde televisão a frigorífico, cama e mesa. Era um mundo que eu não comungava por pensar que ele também tinha direito à sua privacidade. Só não podia era imaginar que o mundo dele se resumisse àquilo nem que ele fosse tão desinibido e flexível em termos de posições coitais. Estava estarrecida a olhar para aquele espalhafato, quando ouço Paulo dizer:
“Tenho a solução perfeita para o teu cartaz”, e nisto saltou inesperadamente do leito do amor.
“Agora? Agora não, biscoito”, respondeu o director.
Mas Paulo foi a correr para as escadas e o senhor director lá teve de esperar se queria voltar a pôr o biscoito na boca. Dois minutos depois, lá estava Paulo de regresso, com a minha fotografia nas mãos. “Quem é essa campónia?”, perguntou o outro. “A Nádia”, respondeu Paulo a rir-se. “E achas que ela não se importa?”, quis saber o director como se tivesse ficado interessado na fotografia.
“Dás-me o graveto, que eu trato dela”, disse Paulo.
A gravação não acabava ali, mas não tive estômago para ver mais e desliguei. Uma coisa era certa, Paulo devia ter um autêntico estúdio naquela cave e olho para o cinema também não lhe faltava, pois fazer uma realização daquela envergadura não era para qualquer amador.
Viktor tinha desencadeado as suspeitas que sabemos, mas agora o director vinha esclarecer definitivamente até os espíritos mais incrédulos e eu não tinha outra alternativa senão conformar-me com o facto de ter estado casada aqueles anos todos com um autêntico trapaceiro. Tinha saído do duche e preparava-me para me meter na cama, quando o telefone tocou. Número suprimido? Era Andrey:
– Espero que não te tenha acordado.
– Não, diz lá.
– Viste aquilo?
– Sim.
– Há quanto tempo é que não vais a Azeitão?
– Desde que o Paulo morreu praticamente nunca mais lá fui…
– Olha, é assim: tens lá um estúdio que nem todas as escolas de Cinema. Não sei se sabes, mas já tinha andado lá alguém a espiolhar aquilo antes de mim, e quem lá foi sabia ao que ia, pois dei pela falta de uma série de gravações. Penso que quem lá foi o tenha feito há bastante tempo, talvez há três ou quatro anos, mas mesmo assim, fica atenta, não vás ter mais surpresas…
– Então foram lá e deixaram ficar este DVD?
– É que esse estava mais escondido…
– Onde?
– Debaixo do assento do tractor de cortar relva, na garagem.
Enfim, cada maluco com as suas taras, cada tarado com as suas manias. Que insólitas descobertas me estariam ainda reservadas? Por quanto tempo poderia eu ainda assegurar que Libério era um livro cuja leitura já nada me dizia? A seguir a uma página negra, vem sempre uma página branca. A seguir ao sofrimento vem sempre um bafejo de felicidade. Da próxima vez que me apanhar em maré de sorte hei-de inventar uma maneira de não virar a página. Ah, hei-de, hei-de…