José Luís Peixoto (JLP) atingiu a idade de meia-vida e, em registo de “não-ficção (texto da contracapa), perfez uma viagem ao fundo da sua existência, sumariada no seu último livro, O Caminho Imperfeito. Note-se que o título não indica “um” (indeterminado), mas “o” caminho, bem definido, o “seu” caminho. Ainda que profana, trata-se de uma viagem verdadeiramente iniciática já que tem como objetivo atingir o autoconhecimento e determinar os tentáculos existenciais que têm ligado a sua vida aos outros e ao mundo. Não se trata de uma viagem de prazer, ou uma viagem turística, ou uma viagem encomendada para uma reportagem, mas uma viagem ao fim ou ao fundo de si próprio e, por via do caminho percorrido, desenvolver e atingir um autoconhecimento sintético e iluminante sobre a sua vida.
É neste sentido que, neste seu novo livro, a viagem, mesmo profana, é iniciática, busca fins de conhecimento, não materiais, não históricos, mas, seguindo a antiquíssima divisa de Sócrates, de busca de si mesmo. Porém, como Sócrates, o resultado atingido e o caminho percorrido como conteúdo concreto da viagem não comprazeram totalmente o autor/narrador (ver diferença apontada no livro, pp. 100-101): gostou e não gostou da viagem.
Gostou porque descobriu a razão por que é escritor (p. 114) e porque viaja (p. 115) – não revelamos os porquês para não furtar o prazer da descoberta ao leitor; gostou porque cimentou laços familiares (por exemplo p. 103, o casamento em Las Vegas, p. 108, a ida da família toda a esta cidade, pp. 119-120) e a amizade com Makarov, o companheiro de uma das viagens, antigo amigo das tatuagens no Bairro Alto e ilustrador do livro; gostou porque face a duas cidades, a mais profana e materialista do mundo, Las Vegas/EUA, e uma das mais religiosas e/ou espiritualistas, Banguecoque/Tailândia, defrontou-se consigo próprio, com os seus limites cívicos e mentais; gostou porque detetou fios inconsúteis de ligação entre a infância e a adolescência numa aldeia do Alentejo, o filho mais novo de um carpinteiro, e o adulto escritor e viajante, não uma vida artificial, mas uma vida genuína, no passado e no presente. Gostou, enfim, porque encontrou o fio ontológico de ligação da totalidade da sua existência, percebeu que não viveu inutilmente, e que o que tem feito (escrever, viajar) continuará a ser doravante o fulcro da sua vida.
Não gostou porque constatou ser “imperfeito” o caminho: “Quanto mais tento conhecer-me, mais percebo o quanto falta para me conhecer. Quanto mais ilumino, mais consciência tenho das enormes distâncias que falta iluminar” (p. 110); não gostou porque constatou que não é sujeito da sua existência: todo o artigo número 27, demasiado longo para aqui transcrever; não gostou, porque percebeu que o caminho é o lugar da imperfeição e a viagem, por maior, é sempre inconclusa: “Não sou o meu corpo, não sou o meu nome, não sou o que tenho, não sou estas palavras, não sou o que dizem que sou, não sou o que penso que sou” (p. 184). Não gostou porque percebeu que muito do que é como escritor lhe é exterior, que é apenas um elo do “caminho”: “Sou um caminho. Sou alguma coisa que vem de antes, que me foi entregue pelo meu pai. Também ele a recebeu. (…) Sou alguma coisa que avança. Sou alguma coisa que continuará depois de mim, que entrego aos meus filhos” (p. 185). E, mais radical, na p. 152, a propósito da decisão impulsiva de partir para as duas cidades: “Será que alguém decide alguma coisa?”.
A coesão do texto narrativo é dada pela história macabra de alguém que envia pelo correio de Banguecoque para Las Vegas várias caixas contendo a cabeça de um bebé, o pé direito de uma criança cortado em três partes, pedaços de pele tatuada e um coração humano. Narrada na primeira página, ela surge a espaços no texto, acrescentando nova informação, até finalizar na última página do livro. O leitor desconhece se, inserida num texto de certo modo confessional, a história é verdadeira. Porque alimentado pela “não-ficção”, pressupõe-se ter sido verdadeira.
Balanço final da viagem: “As palavras são espelhos imperfeitos. Escrever, mesmo com todas as insuficiências, é o que sei fazer para descobrir quem sou” (p. 113), e, interpretado o passado e o presente, conclui o autor/narrador: “O velho que imagino que serei é o velho que gostaria de ser” (p. 147), ainda que a criança imaginada não tenha sido a criança real, a que foi mesmo, mas aquela é a única criança pensável pela memória e, portanto, a outra, a verdadeira, não existe.
De recordar ao autor-narrador o belíssimo final de Viagem a Portugal, de José Saramago: “A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. (…) É preciso recomeçar a viagem. Sempre”. No caso de JLP, traçar até ao final da sua vida, que desejamos longa, novo “caminho imperfeito”.
Única falha: José Luís Peixoto atravessou o rio Mekong e não se lembrou que foi aí que Luís de Camões naufragou.JL
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