À hora certa gritava: “O lanche é do povo, não é de Moscovo!”, e transformava a nossa simples ida ao café num movimento proletário. Ele, o meu querido José Manuel Rodrigues da Silva, preferia almoçar sozinho, ou a dois, mas o lanche era por excelência o momento social. Nós seguíamos o apelo do editor… eu, a Maria Leonor Nunes, o Miguel Eduardo Serrano, a Maria João Martins, a Susana Martins, o João Ribeiro… Mais tarde o Luís Ricardo Duarte, a Francisca Cunha Rêgo, a Carolina Freitas e tantos outros que por ali passaram, antes ou depois. Não discutíamos as perigosas curvas da revolução, nem planeávamos o assalto ao palácio de inverno, divergíamos antes entre diatribes intelectuais ou mundanas, pinceladas por um glamoroso vernáculo, intercaladas por uma bica e uma sandes de chourição. Aliás, uma das coisas que lhe custou, quando mudámos para um edifício desterrado de Paço de Arcos, foi ter que se sujeitar a um bar que não vendia ovos cozidos.
Naquele tempo, a redação ainda era uma redação. O diretor que todos admiravam e respeitavam. O Miguel Eduardo que paginava o jornal enquanto cantava e declamava poesia. O João Ribeiro, o fotógrafo, que todos gostavam de provocar, mas que tinha um coração de ouro, a carteira profissional nº 1 e orgulhava-se de pôr o Saramago a sorrir. A Maria João Martins e o seu universo fantástico povoado de estrelas de cinema e figuras da moda. As ideias mirabolantes do Ricardo. O sorriso da Francisca. A competência da Otília. A redação ainda era uma redação. Nos dias de fecho, ficávamos todos, muitas vezes sem qualquer necessidade, a acompanhar os momentos finais da paginação, até às tantas, numa espécie de afirmação de obra coletiva, ideia que, já na época, estava em desuso. Nas paredes estava afixado um poster da seleção nacional com as nossas caras por cima dos jogadores. O Zé Carlos à baliza… e a distribuir jogo. Todos os outros eram pontas de lança.
Aos poucos, a redação foi definhando. Primeiro saiu o Zé Manel (pelos piores motivos), depois o Miguel Eduardo, a João, a Otília, a Francisca, o João Ribeiro, a Carolina e finalmente o Ricardo. Fiquei eu, a Leonor e o Zé Carlos. A redação já não é bem uma redação. Mas nós continuamos a insistir, acreditando que aquilo que fazemos é nobre, como quem hasteia uma bandeira. Já não há equipa de futebol na parede (o cartaz perdeu-se numa das remodelações), mas junto ao bar puseram uma mesa de matraquilhos. E, volta e meia, desço para jogar uma partida com os meus camaradas da Visão. Olho para mim e vejo-me como um matraquilho, com um varão que me atravessa e me prende. Daqui não saio a não ser que desmontem a mesa. Aparentemente, é o que estão a tentar fazer. JL
O Homem do Leme: Matraquilho
JORNAL DE LETRAS «À hora certa gritava: "O lanche é do povo, não é de Moscovo!", e transformava a nossa simples ida ao café num movimento proletário.»
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