Quando era adolescente uma amiga da sua mãe costumava ficar a dormir lá em casa, em Buenos Aires, na Argentina, onde nasceu em 1948. Falavam de tudo, mas certa noite essa misteriosa mulher, que poucas vezes voltou a ver, revelou-lhe um segredo. Nele escondia-se muita da tragédia da II Guerra Mundial e do Holocausto. A confissão perseguiu Cristina Norton ao longo da vida, que agora decidiu revelá-lo através da ficção. O Rapaz e o Pombo é uma evocação da violência que se abate em tantos momentos da história humana sobre as mulheres, ao mesmo tempo que se afirma como uma defesa da liberdade e da inocência, encarnadas na amizade entre os dois protagonistas do título. Regresso ao romance da escritora, seis anos depois de O Guardião de Livros.
Jornal de Letras: Este livro é uma denuncia?
Cristina Norton: Também. Senti esse apelo quando comecei a escrever sobre um rapaz e um pombo. Começou com ser um conto sobre as crianças e o Holocausto. Mas os editores acharam que era demasiado forte, apesar de ser uma história curta. Nem chegava a contar o verdadeiro horror. Amuei, como é natural.
Os escritores também esse direito.
Claro. Mas a ideia e a vontade ficaram. Passados meses disse: “Quero mesmo escrever esta história”. O rapaz, o pombo, a irmã, a mãe, o pai e a família não têm nome, nem grandes características físicas porque representam todos aqueles que não tiveram possibilidade de falar, os que morreram e não puderam contar o que lhes aconteceu. E com isso surgiu o momento certo para partilhar o segredo que uma amiga da minha mãe me contou quando era muito nova. Trata da pior escravatura que se pode impor a uma mulher. Ela às vezes ficava lá em casa e aparecia no meu quarto. Olhava para mim, falava, dizia que gostava de ter tido uma filha como eu. Um dia perguntei-lhe: e por que razão não teve? Noites depois, contou-me tudo. Em parte, este livro é a sua história romanceada.
Por que razão este segredo só surgiu agora na sua escrita?
Quando me contou o segredo, ela fez-me jurar que nunca o contaria ao meu pai, mãe e irmã. Já os perdi todos. A verdade é que a imagem desta mulher que me marcou imenso me surgia de tempos a tempos. Na altura, não percebi tudo, mas as suas palavras ficaram gravadas para sempre. Há dois anos percebi que tinha de responder a este chamamento, agora que a jura não seria quebrada.
O livro alterna três registo. Como chegou a essa estrutura?
Nunca sei o que vou escrever. Todos os meus romances começam a formar-se dentro da minha cabeça, imaginando personagens e situações. Só quando me sento a escrever é que tudo acontece, colocando-me na pele dos protagonistas. Por um lado, quis dar dois olhares, o do narrador, que avança na história, e o do olhar da criança, que tenta perceber o porquê da Guerra e do Holocausto. Por outro, não podia deixar de dar voz à amiga da minha mãe, que fala num curto capítulo.
Esta história de um rapaz e de um pombo é a defesa da inocência e da liberdade?
Exatamente. Divirto-me muito a tentar perceber como é que me surgiu a ideia do pombo, já que não gosto nada deles (ainda tenho a ideia que são ratos do ar…). Mas a esta criança fazia falta um animal de estimação, um amigo, um pássaro que, pelo voo, simbolizasse a liberdade.
Com a crise dos refugiados tem-se falado muito do destino das crianças, em particular em França, com o desmantelamento do campo de refugiados de Pas de Calais. Fazer uma ligação entre este livro e a atualidade será abusivo?
Não, se bem que quando comecei a escrever este romance esses problemas ainda não estavam na ordem do dia. Mas há, de facto, muitos paralelos. No fim do Holocausto houve agências governamentais de vários países que tentaram reunir as famílias. Perder os pais nessa situação e achar-se sozinho no mundo deve ser a coisa mais horrorosa no mundo. Em Pas de Calais ou num Campo de Concentração, é sempre um pesadelo.
Segredo e memória são duas palavras chave nos seus livros?
Se são, não de propósito. Só que fico zangada com o que não é dito. Pergunto-me muitas vezes por que razão não se contam (ou se escondem) verdades. Durante muitos anos não se publicaram livros sobre a II Guerra Mundial. Ninguém queria lembrar os horrores. Mas para não se repetirem temos de os contar. JL Luís Ricardo Duarte