É um regresso há muito esperado, mas que a certa altura pareceu nunca mais se concretizaria, o que ocorrerá no próximo dia 21, às 21 e 30, no Palácio de Queluz: após um longo afastamento das salas e do contacto com os melómanos, a pianista volta a tocar em público, num concerto integrado na temporada musical que ali decorre. São as “Noites de Queluz”, e a atual deputada (pelo PS) e ex-ministra da Cultura interpretará obras de João Domingos Bomtempo (1775-1842). O compositor português, constitui para ela, a vários títulos, uma referência: “Por ser um homem de causas, um pedagogo, um reformador, um patriota, e o único grande compositor-pianista português de cariz verdadeiramente europeu do seu tempo”. “Por isso – diz ao JL – é com gosto e humildade que irei tocar a sua música, com os jovens músicos da Orquestra Concerto Moderno (do Colégio Moderno), dirigida por César Viana”.
Gabriela Canavilhas fala com entusiasmo do compositor e do que representou para si: “A música de Bomtempo foi uma descoberta determinante no meu trabalho como pianista, e também uma revelação que se consolidou ao longo dos anos e ‘extravasou’ o enquadramento musicológico. De facto, conhecer a sua música e vida é mergulharmos na história sociocultural portuguesa num tempo de grandes transformações sociais e políticas.”
E não se fica por aqui. Aliás, o seu concerto em Queluz, será também um “concerto palestra”: além de interpretar quatro composições de Bomtempo, falará também dele e sua obra em duas intervenções de 15 minutos cada – e essa “Noite de Queluz” tem o título “Um compositor português no tempo de Napoleão”. Antecipando algumas ideias do que decerto então dirá, e continuando a sublinhar o contributo cultural e cívico do artista, Canavilhas acrescenta: “Bomtempo foi parte ativa nessas transformações, quer como músico, ao fazer a ponte entre o classicismo e o romantismo musical em Portugal, quer como cidadão. Ou seja: reformador do ensino, pedagogo, fundador, com Almeida Garrett, do Conservatório Nacional de Lisboa.” E conclui: “Mais, foi um verdadeiro ativista político, distinguindo-se como partidário entusiasta do Liberalismo e da Carta Constitucional, sempre colocando a sua arte ao serviço destas causas. O que teve enorme alcance, porque depois dele, a música e o ensino musical em Portugal ficaram um pouco mais perto dos parâmetros europeus. Só por isso merecia ser celebrado.”
Recorde-se que Gabriela Canavilhas, “açoriana” nascida em Angola – onde seu pai, militar, prestava serviço – tem os cursos de Ciências Musicais da Universidade Nova de Lisboa e de Piano do Conservatório Nacional, do qual desde 1986 é professora, tendo ensinado antes no Conservatório de Castelo Branco e na Academia dos Amadores de Música. Com uma assinalável carreira como intérprete, sobretudo de compositores portugueses, clássicos e contemporâneos, de vários destes em primeiras audições, tem sete álbuns gravados e deu inúmeros concertos até… Até a sua formação e o seu empenho, inclusive cívico, começarem a desviar a pianista para o campo da “ação” musical, cultural e, finalmente, também política. Assim, foi diretora artística do Festival MusicAtlântico, presidente da Associação responsável pela Orquestra Metropolitana de Lisboa, Academia Nacional Superior de Orquestra e Conservatório Metropolitano de Música de Lisboa (2003-2008), e diretora regional da Cultura do Governo dos Açores (2008-2009).
Ora, se com tudo isto a carreira como pianista se tornou muito difícil, ficou mesmo ‘impossível’, quando dos Açores veio para ministra da Cultura, em 2009. E impossível se manteve quando após deixar o Ministério, com a derrota do PS e os governos de Passos Coelho, passou a ser deputada ativa, quer no Parlamento, quer, por vezes, fora dele, como na campanha presidencial de António Nóvoa. Gabriela reconhecia que quase tinha deixado mesmo de tocar. E agora surge esta surpresa… Como foi possível? Responde:
” Houve um simpático convite da organização da temporada musical do Palácio de Queluz. Que, perante as minhas resistências em aceitar, teve a gentileza de insistir até vencer as minhas hesitações. Com uma data e um compromisso marcados, fiquei obrigada a estudar, a praticar e a cumprir! E foi o que fiz. Nem fui aos Açores no verão, passei as férias a estudar piano em Avis, religiosamente, três, quatro horas diárias, escalas, exercícios básicos, até conseguir pôr os dedos a mexer de novo devidamente. Achei curioso acompanhar o progresso físico da musculatura dos braços, a força e agilidade dos dedos, após não estudar piano há 13 anos!”
E agora, vai retomar a carreira como pianista, pelo menos dar mais concertos? A isto Gabriela Canavilhas não responde, ou (ainda?) não tem resposta. Mas reconhece que “recomeçado o trabalho musical, fica-me agora mais fácil abordar o piano e explorar novos (ou velhos) repertórios, dando continuidade ao estudo, sem deixar cristalizar outra vez algo que esteve sempre subliminar em mim durante todos estes anos”.
Legenda
Gabriela Canavilhas Concerto com obras de J. D. Bomtempo no próximo dia 21, no Palácio de Queluz