Todos os dias, a atualidade dá novos argumentos que tornam ainda mais atual A Crisálida, o livro de poesia que Rui Nunes acaba de publicar. Os atentados terroristas, os refugiados, as decapitações e execuções do DAESH, o sangue, o sofrimento, a morte, a indiferença, a violência marcam o tempo e uma Europa à beira da “destruição”. Uma realidade a que o escritor e poeta, que vive entre a Áustria e Portugal, dá resposta.
Foi para ver as luzes do Advento que em novembro de 2014 foi passar uns dias a Munique. E o que viu à margem das iluminações festivas, da multidão que passeava feliz e civilizada, em Marine Plaza, impôs-lhe a escrita. “O que hoje é extremamente violento já estava latente há dois anos”, diz ao JL. “A vingança era previsível perante a indiferença de uma Europa tão fria. Daí o tema de Medeia. A violência estava espalhada e entrava por todas as frases, partia todas as palavras”, escreveu.
A Crisálida, que se vem juntar a títulos como Grito, O Choro é um Lugar Incerto, Os Olhos de Himmler, Ouve-se Sempre a Distância numa Voz, A Mão do Oleiro, Barro e ao recente Noturno Europeu, expõe assim o real, brutal, sem contemplações ou amabilidades. Antes com a dureza e a urgência de quem como Rui Nunes vê o mundo “rente ao chão”, o menos visível para quem está habituado a “olhar só em frente”
Jornal de Letras: A Crisálida tomou forma depois de ter feito uma viagem a Munique, a 7 de novembro de 2014. Porquê?
Rui Nunes: Era o primeiro fim-de-semana do Advento e foi impressionante o que me foi dado ver. As cenas de que falo no livro correspondem a cenas realmente vistas: o homem que apanha o resto das batatas fritas que a rapariga tinha deixado na mesa; a mulher romena a cantar e as moedas a cair num copo de plástico; os rapazes de gorro sentados… Tudo isso me deu a ideia de uma Europa cuja identidade está destruída, incapaz de acolher, absolutamente indiferente. E foi isso que tentei escrever.
Apesar de ter dito, quando publicou o livro anterior, que dificilmente o voltaria a fazer?
De certo modo, em termos físicos, estou de facto tão limitado, a nível da visão, que a escrita é a única fresta que me resta para ver e ler o mundo. Além disso, a realidade europeia atual, tão violenta, tão indigna, agride-me E nesse sentido obriga-me a escrever. É uma Europa regida por burocratas, que perdeu a sua própria cultura, que ergue novos muros de arame farpado que lembram outros mais antigos.
Em que sentido?
Existem duas realidades: uma à altura dos olhos, aparentemente harmónica, e outra ao rés-do-chão, extremamente violenta. Um dia, esta fará explodir a outra. É esse pressentimento que também existe nas páginas do meu livro.
Daí a ideia de crisálida?
Sente-se que a Europa é um continente à espera da explosão. A crisálida anuncia esse estado final.
A morte da Europa de que muitos falam?
Exato. De uma Europa indiferente e fechada sobre si mesma.
A ideia de morte atravessa o livro, esse ‘arrepio’ da imagem dos que são decapitados pelos carrascos do DAESH, a decapitação do humano?
E não só pelos terroristas do denominado Estado Islâmico. De uma forma geral, esses valores humanos são hoje postos em causa. O humanismo europeu é uma ficção fascinante, mas intermitente.
Intermitente?
De vez em quando, há afloramentos de uma violência extrema que o negam. Penso que hoje estamos a viver um desses momentos de profunda desumanização, em que o sentido do Outro desapareceu. E ao perder-se essa noção, tudo é permitido. Por isso, a culpa é generalizada. O que me perturba é que, tal como aconteceu há 75, 80 anos, está a passar de algum modo despercebido. Vê-se como isso não se reflete ainda na literatura, na arte e muito pouco na vida das pessoas. Como se se passasse muito longe e tudo continuasse a ser o que era, quando já não o é. Como é possível esta violência explícita em que estamos mergulhados não aceder, por exemplo, ao universo da escrita?
A literatura não está a espelhar o presente?
Parece que vivemos, nesse plano, de uma espécie de retórica impermeável. Contam-se histórias, histórias, porque elas pacificam. Com o seu princípio, meio e fim, dão-nos uma totalidade que na verdade está hoje a ser minada. Inquieta-me que a escrita, enquanto expressão do humano, não reflita mais o que se está a passar. Como pode o real escapar a quem tem como função mostrá-lo? Infelizmente para muitos escritores é melhor não o ver. Preferem falar de coisas mais amáveis.
Em A Crisálida, fala também do efeito de adormecimento, de banalização da violência nas imagens televisivas. Um motor de indiferença?
É que os media virtualizam de tal forma a violência que muitas vezes a tornam consumível. É uma realidade sem cor, nem cheiro. O sangue esbatido já não agride e portanto deixamos de reagir com a mesma intensidade. E se incomodar muito a violência, mesmo virtualizada e limada, que nos entra pela casa dentro, desligamos o aparelho.
A Crisálida é o seu livro mais violento?
Não sei se é o mais violento. Sei que é o produto da violência que a realidade exerceu sobre mim. É a minha resposta e nessa medida tem que ser também violenta.