1. Nos Maristas, onde andei, que era só atra-vessar a rua, não gostaram que eu fizesse uma redacção em memória de Patrice Lumumba, quando o mataram. E apanhei uma suspensão, por ter ecoado nas aulas o que ouvia em casa, luta contra a tirania, pai republicano, o Jean Valjean, irmã com os livros da Casa dos Estudantes do Império, álbuns sobre Auschwitz, os livros de um católico sobre quem andava a fazer tese, Hein-rich Böll, muito antes do Nobel, entre 1958 e 1960, pelos meus doze anos. Lá apanhei a suspensão e os meus pais: «Fizeste bem, enfrentaste os jesuítas» (para o meu pai, todos os católicos e salazares eram jesuítas), «podes ir ao cinema todas as tardes desses três dias de suspensão». E fui, sessões duplas nos cinemas de bairro, Cinearte, Jardim-Cinema, Europa onde vi o Rio Bravo, filmes toda a tarde e o autocarro, o 9 para Campo de Ourique, o 12 para Sapadores, onde ia ao Royal, ou, na Almirante Reis, ao Lys, aprendi a andar por Lisboa à caça de filmes, ao fim da linha esperavam-me Ava Gardner ou Sylva Koscina, minhas amigas.
2. No Juvenil, do Diário de Lisboa, ganhei um prémio Fósforo-Ferrero, por ter escrito um ensaio (?) sobre poesia africana, leituras que fazia das antologias que andavam cá por casa, Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto, a libertação, Noémia de Sousa, a luta. Era eu muito pequeno e o meu pai deu-me uns Salgaris, «são contra os tiranos», não me esqueci, nem do Conde de Monte Cristo cujas aventuras, ávido, seguia, nessas horas onde, à vezes, se ouvia o Beethoven pelo Oistrakh os as Canções Populares de França pelo Montand. A Censura proibiu o tal artigo, mas o Mário Castrim deu-me o prémio, veio fotografia no jornal, e com esse dinheiro lá fui um mês inteiro para Paris, residência universitária na Rua Jean-Jacques Rousseau (o meu pai era Emílio!) e filmes todo o dia, o primeiro foi o Eldorado de Hawks, o último Paisà de Rosselini, e no meio milhentos Godards, Eisensteins, Renoirs, Minellis, Langs, A Religiosa, Agosto a pé pelas Tulherias, dos Halles a Chaillot, um dia, a encher um cantil na Cinemathèque, encontrei o Fernando Guerreiro e o Eduardo Paiva Raposo, começámos a falar de filmes, tantos filmes, era 1966, devia ser, o metro aéreo de Paris, os cadernos Joseph Gibert, a fonte de Saint-Germain, essa palavra encantatória, «estudante» e as suas canadianas. E, à procura de filmes, calcorreava Paris, o Pont-Neuf, o Boul´Mich, recitando Verlaine, comprando Fanon, Bazin, Simone Weill ou Gramsci, sonhando, sonhando, de Balzac na alma.
3. Lisboa, depois dos cinemas de bairro, atravessei-a de ponta a ponta, sobretudo quando, com a Eduarda [Dionísio], o Luís Filipe Salgado de Matos, o Luís Miguel [Cintra], o Osório Mateus, o Manuel Gusmão fazíamos um jornal, Critica, princípio dos 70, noites na Estrada da Luz a compilar, telefonemas a saber quando haveria o artigo, encontros com gente admirável, Sophia, Abelaira, Glicínia, o Carlos de Oliveira. E quando o jornal saía da tipografia do senhor Guide, ali em Campo de Ourique, era distribuí-lo, não gastar dinheiro nos correios, fiquei com as Avenida Novas e lá ia eu, de Renault 4, entregar o jornal ao Luís Dourdil na esquina da João XXI, ao Paulo Rocha no prédio do Vává, ao Ramos Rosa na Barbosa du Bocage, Lisboa e as casas fui-as descobrindo assim, de carro, nas horas sem ser de ponta, Apolo 70 até Algés. E depois repousava com bicas seguidas no Monte-Carlo, aparecia a Luíza [Neto Jorge], o Gastão [Cruz], o João César [Monteiro], ríamos.
4. Aprendi, miúdo, a atravessar cidades, a Paris dos livros de Balzac, a Florença de Pratolini, o Porto numa pensão diante da tipografia do Comércio a funcionar toda a noite, Madrid ou Barcelona com os meus pais, pantalones de pana nos Preciados, cinema no Palácio de la Musica, bugigangas na Sepú, Londres depois, a estudar cinema, que é como quem diz (isso estuda-se?), no metro e no autocarro, a Wanda de Barbara Loden foi então que por ela chorei, Berlim depois, na Schaubühne, o meu Peter Stein, dois anos por ali, Büchner em alemão, Heiner Müller às vezes ao jantar na Rheinbabenallee, Roma sempre e Milão (porque é que me entendo tão bem nesta cidade que declaram antipática?), andar sem parar, entusiasma-me a cidade, procurar cinemas, entender o plano do metro, ir em busca das livrarias, dos teatros, ainda estará na mesma sala do Prado o Marte de Velásquez? (agora com esta mania das exposições temáticas passam a vida a mudar os quadros das quietas sepulturas que haviam ser as suas e era tão bom saber que ao alto das escadas à direita estava a Maja ou, na sala intermédia, a paisagem da Villa Medicis, agora estão sempre fora do baralho). Ai, aquela tarde, em Milão na Cívica Galleria, ao alto da escadaria ducal, em quartos mal amanhados, três Matisses, dois Klees, muitos Severini, Picassos, um Bracque perfeito, pelas janelas o parque, e a passearmos ali, o Miguel Lobo Antunes comigo e mais ninguém,
5. Não, «rien de toi ne m´émeut», natureza, nem árvores, nem rios, olho-os e à luz leitosa dos dias, às vezes as ondas do Guincho chamam-me à vida, mas atravessar o Hudson num ferry boat, apanhar o barco e ir até Staten Island no meio das gentes que regressam do trabalho naquela Nova Iorque que foi e é o sonho democrático, misturar-me com as pessoas silenciosas, que regressam a casas longe, isso sim, enaltece-me. Como me comove sempre a praça de Cacilhas, aquele vaivém, aquela balbúrdia, aquela luta pela vida. E não me esqueço de um fim de tarde desabrigado, jornais que andavam ao vento, o forte odor operário naquela praça, não me esqueço do espanto no olhar de Titina Maselli, e ela que me diz «tenho de telefonar para Roma, nunca tinha estado tão perto desse fantasma que assombra a Europa.» E, com as moedas que juntámos: «Estou em Cacilhas, mãe! [a velha mãe era do PCI] Quando aí chegar, conto».
6. Porque me lembro só de lugares e das pessoas que me levaram, gente que encontrei, aulas, conversas, conspirações? Pedem-me a vida e vem-me aquela escadaria do Hotel Médio Dia em frente à estação de Atocha, noite inteira a discutir com o Professor [Luís Filipe Lindley] Cintra e o Luís e o Paulo muito novinho, a discutirmos a beleza dos dias, porque me lembro só de pessoas e lugares, gente, podia fazer uma lista? É esse o seu perfume? O perfume daqueles dias no Porto com a Rita Lopes Alves, ainda ali tenho um retrato tirado pelo Pedro Costa? Ou dos dias de Évora com o Paulo Claro? A inapagável doçura daquela tarde em Montemor com o Miguel Borges e o Pedro Marques a lembrar o texto de Beckett para o espectáculo uns dias depois? Ou os dias com o Jean Jourdheuil, em Campo de Ourique, Berlim, na Arrábida, em Paris, Nova Iorque, ou no nosso Hotel Simón, ali em Sevilha?
7. E agora, do que me lembro, é daquela exposição organizada pela Gulbenkian, 100 anos de pintura francesa, ainda no outro dia, num alfarrabista, vendiam o grosso catálogo, ainda não tinham concluído a sede e a exposição foi na FIL, à Junqueira, foram dias e dias a ir lá ver e rever e uma tarde levou-nos o Mário Dionísio, meu professor no Camões, que me foi mostrando os quadros, a Lola de Valence de Manet, a frieza analítica, a sua paixão, a distância lucreciana em que se coloca perante o tema, até podem ser uns espargos, dois limões, aprendi tanto nesse liceu. o João Bénard a falar da Anouk Aimée, eu a discutir com o Luís Miguel e o José Mariano Gago, a discutirmos os Chapéus de Chuva de Cherburgo, sábados a ir ver a Deneuve super ou ordinaire?, e a querer que outros vissem, que vissem a beleza.
8. Andar por aí a procurar filmes e livros, levado por amigos (o José Ribeiro da Fonte que me levava a São Carlos ver a Jurinac na Butterfly!), levando amigos, a última vez que fui a Paris, foi o Nuno Júdice que me fez lá ir mostrar o António, com o Manuel Wiborg, e com ele, de novo, atravessei o Pont-Neuf, quarenta anos depois de nele eu próprio ter jurado «à nous deux, Paris» como quem diz «São Petersburgo, o mundo»,
9. É, andei por aí. Com gente, procurando gente, pontes e vales, tem sido assim esta vida. E houve aquele dia, 25 de Abril de 1974.