Esplendorosas – foi assim que, depois de orquestradas, as canções soaram a Maria Ana Bobone. Aos 44 anos, a fadista lança Presente de Natal, um disco que será distribuído, em exclusivo e gratuitamente, aos nossos assinantes, na edição da VISÃO que vai amanhã para as bancas.
Como chegou ao repertório deste novo disco, em que mistura música litúrgica e clássica com canções tradicionais?
O disco começou por ser uma espécie de atualização das músicas que, hoje em dia, os miúdos cantam nas igrejas. Demos-lhes, por assim dizer, arranjos mais cuidados. Sempre cantei em coros de igrejas. Acho, aliás, que estes cumprem uma função muito importante, porque elevam, espiritualmente, as pessoas ‒ e não precisam de muita coisa: apenas de alma e coração.
Os arranjos são seus?
Os arranjos são inspiração minha e concretizados por Manuel Rebelo. Lembro-me de estar no coro e de pensar: “Gostava de ouvir isto de outra maneira.” Então lembrei-me do Manuel Rebelo, que é maestro, cantor e, além de tudo, meu amigo. Expliquei-lhe a imagem sonora e o ambiente que eu pretendia, dei-lhe uma indicação harmónica básica, que ele depois potenciou dez vezes.
Que alegria é essa de embrulhar e de voltar a embrulhar canções de sempre?
Dá-me imensa alegria ver aquelas músicas, que habitualmente são tocadas só com uma viola, valorizadas com estes arranjos e com esta orquestração. Vestidas desta maneira, ficam imponentes, esplendorosas.
Costuma ouvir canções de Natal?
Costumo, e isso, de resto, explica porque o disco também integra algumas canções natalícias. Há uns anos, fiz uma seleção das melhores canções de Natal de sempre para oferecer à minha família, uma espécie de playlist. Todos a adoraram e eu fiquei a perceber que é, de facto, algo que faz falta às pessoas: uma banda sonora cuidada para ouvir nesta época.
Ouça aqui, em primeira-mão, três canções
Canções de Natal não são, portanto, música de elevador?
Não. Oiço imensas canções de Natal, inspiram-me. Por exemplo, gosto muito de um disco chamado Christmas in Vienna. É tão bonito que eu paro o que estou a fazer só para ouvi-lo. É comovente, maravilhoso. O espírito das canções de Natal transcende a religião, transcende tudo.
E tem como hábito cantar para a família, no Natal?
Sim, por exemplo, O Sanctissima, que abre o disco, é uma dessas músicas. Canto-a desde sempre, em latim. A canção de embalar de Brahms também vem da minha infância. Começo por cantá-la em inglês e, a partir de certa altura, ela passa a Noite Santa. É uma letra antiga que, cantada na igreja no Alentejo, as pessoas reconhecem. Sinto que são coisas que estão esquecidas, perdidas e, por isso, gosto de resgatá-las.
Tem que ver com a preservação da memória, incluindo as suas próprias memórias?
Quando ouvi O Sanctissima orquestrado, comovi-me imenso. Não sou piegas nem gosto muito desse estilo, mas toca-me em coisas tão profundas, da infância… Parece que vejo outra vez os meus avós e todas as pessoas que já foram embora, como se todos estivessem aqui. Espero que isso também aconteça a quem ouvir o disco.
Como chega hoje a música às pessoas? Parece mais fácil, mas, ao mesmo tempo, tudo se dilui no meio da confusão…
É o mais difícil… É muito difícil fazermos chegar a nossa música, que é aquilo que temos para dar, a quem a pode apreciar. Mas também é a forma mais eficaz de conquistarmos público. Não há nada que possa falar melhor sobre aquilo que fazemos do que… aquilo que fazemos.
Como se casam todos estes géneros musicais que interpreta?
Não consigo recusar a música. Não sou capaz, pura e simplesmente.
Não sente uma dispersão em relação ao fado?
O fado é a minha base e, para as pessoas, a verdade é que o fado funciona como um pilar claro. Mas eu sou bem mais diversa e, por isso, não consigo conter-me só no fado. Quero experimentar muito mais coisas, quero vivê-las. Ficar no fado apenas por uma questão de coerência conceptual, não sendo essa a minha natureza, não faz sentido.
Coerência conceptual ou comercial?
Mais comercial até. Sacrifico bastante a parte comercial por conta destes meus impulsos. Tenho tido uma carreira (se é que se pode chamar carreira) muito impulsiva [risos]. Ora quero fazer um disco de folk, ora quero fazer um disco norte-americano, ora quero cantar em inglês, ora quero compor… Tudo se casa com a minha vontade de explorar todo este repertório.
No próximo dia 21, no concerto do Casino Estoril, também vai interpretar algumas destas canções?
Vou fazer uma viagem através destes dois trabalhos: Presente de Natal e Fado&Piano. Desde que cantei com a Filarmónica do Qatar, tenho uma série de fados ensaiados e rodados para orquestra e piano. A ideia é recuperar a tradição do antigo fado de salão.
Porque faz sentido recuperar essa tradição?
Não foi premeditado. Calhou bem. Eu ensaiava ao piano e, por isso, acabava por fazer arranjos neste instrumento. E todos me diziam (os guitarristas que tocam comigo, por exemplo) que aquilo era diferente. Já que tocava piano, achei que esta podia ser outra forma de exprimir-me artisticamente. E, ainda por cima, podia fazê-lo sem ser algo escandaloso, isto é, sem cometer um crime, pois estava inscrito na história do fado.
Dispor-se a estar ao serviço da música é a sua maneira de estar?
Servir a música é estar na disposição de ser o veículo. Acho mesmo que é a única forma de ela fazer sentido. Senão, se tivermos outro tipo de ambições, provavelmente, vamos ter grandes dissabores [risos]. É essa a armadilha da vida. A postura mais segura é pormo-nos ao serviço, darmos o que temos e, depois, deixarmos que as coisas sigam o seu curso. Para mim, é a postura que faz mais sentido. E também sinto que, quando estou a funcionar nessa vibração, as coisas se proporcionam mais. Pormo-nos ao serviço é a melhor forma de ser ajudado pelas circunstâncias