No final de março, a Comissão Europeia aprovou a compra da Monsanto pela Bayer. A operação – avaliada em 60 mil milhões de euros – cria o maior grupo de sementes e pesticidas do mundo e levanta muitas questões sobre o controlo que um pequeno conjunto de empresas tem sobre as cadeias de produção alimentar. Deve tanto poder sobre aquilo que comemos estar tão concentrado?
O casamento dos dois gigantes tinha sido anunciado em 2016 e junta o maior fornecedor mundial de sementes e responsável pelo pesticida mais popular do mundo (Monsanto) com a multinacional farmacêutica alemã, que é também um dos principais players nesses dois mercados (Bayer). E não foi a única operação deste género nos últimos anos. Em 2016, a ChemChina comprou a Syngenta e, no ano anterior, a Dow e a DuPont anunciaram a fusão.
Assim, em breve passará a haver três colossos no setor, praticamente só rodeados por anões. As seis empresas referidas acima, mais a alemã BASF, representavam até há pouco tempo cerca de dois terços do mercado de sementes internacional e 75% dos agroquímicos. Números que já nos colocam em território de oligopólio. Entre 1996 e 2013, os dez maiores grupos de sementes já tinham realizado quase 200 aquisições de empresas mais pequenas. Esta tendência de concentração deverá continuar a aprofundar-se, com a manifestação dos efeitos das mudanças climáticas e o desejo de aproveitar economias de escala. Estamos a entrar numa zona perigosa?
“Acho que sim. A jusante, as empresas de sementes de milho, soja e algodão precisam de tecnologias de manipulação genética. A Bayer e a Monsanto detêm muitas empresas e não querem necessariamente licenciar a sua tecnologia a empresas concorrentes no setor das sementes.
Isto coloca as empresas concorrentes em grande desvantagem porque podem ficar fora do mercado dos OGM [organismos geneticamente modificados] ou serem forçadas a pagar um preço de monopólio para que lhes seja licenciada a tecnologia”, explica à EXAME Kyle Stiegert, professor da Universidade de Wisconsin-Madison, especialista em economia agrícola. No entanto, embora seja importante estar alerta, Stiegert não considera que a nossa soberania alimentar esteja em risco. Pelo menos, para já. “A oferta alimentar é muito diversificada no mundo desenvolvido, em grande parte porque os rendimentos permitem uma dieta diversificada. A maioria das grandes empresas de sementes detém tecnologias OGM para ‘inputs’ animais (milho e soja) e fibras (algodão). São indústrias concentradas com economias de escala em massa.”
O negócio representará a maior compra de sempre por uma empresa alemã, batendo o valor do casamento entre a Daimler e a Chrysler (será mesmo a maior transação em dinheiro de que há registo). A Bloomberg nota que a Bayer ficará com mais de
2 000 variedades de novas sementes de trigo, milho e soja, que se juntam a um portefólio já invejável e dão à criadora da aspirina uma “posição inatacável” no setor, com um quarto do mercado global de sementes e pesticidas. A Comissão Europeia – tal como os EUA, que deram o “sim” à operação no início de abril – exigiu o cumprimento de certas condições para aprovar o negócio, nomeadamente a venda de ativos
da Bayer nos mercados onde a atividade das duas empresas se sobrepõe. “Este pacote de remédios remove todas as sobreposições problemáticas entre as atividades das partes e garante que o número de atores globais ativos, concorrendo e inovando em sementes e pesticidas, permanece o mesmo”, defendeu Margrethe Vestager, comissária europeia para a concorrência. Bruxelas recomendou que esses ativos sejam vendidos à também alemã BASF.
O poder de fixar os preços
Estas medidas minoram, mas não eliminam os riscos. Muitos agricultores temem que estes grandes conglomerados passem a ser capazes de dominar por completo um mercado e subir os preços, deixando os pequenos produtores reféns. Sem concorrência a quem recorrer, os agricultores terão de esmagar as suas margens ou repercutir esse agravamento nos consumidores. Maior concentração significa também mais poder político e capacidade de lobby junto dos governos. As autoridades nacionais tendem a ver mais benefícios do que custos nestas fusões, embora nem sempre o racional usado faça sentido. “Não acho que existam economias de escala nestas fusões, porque a Monsanto e a Bayer já estão muito para lá das suas escalas mínimas de eficiência. Acho que [os governos] estão a dar a estas empresas um enorme poder de fixação de preços, bem como a capacidade de controlar quem tem tecnologias OGM”, acrescenta Stiegert.
Em causa pode também estar a vontade de inovar. Se uma empresa tem o monopólio de determinado mercado, ou mercadoria, dificilmente tem o mesmo incentivo para encontrar novas formas de produção. “À medida que estas indústrias se consolidam, passam menos tempo a investigar, e a investigação que fazem acaba por se destinar aos grandes lucros das colheitas de milho ou soja”, sublinha Phil Howard, da Universidade de Michigan State, em declarações ao Vox.
O mesmo argumento tem sido usado por organizações ambientalistas, que veem os agricultores mais dependentes de multinacionais, que poderão pressioná-los a usar sementes geneticamente modificadas, vendidas em pacote com produtos químicos potencialmente perigosos.
As empresas argumentam que estão a ser empurradas para esta consolidação pela queda dos preços das matérias-primas agrícolas e que é precisamente para garantir que continua a haver inovação que é necessário fortalecer a atividade dos grupos. O debate não é exclusivo do mercado das sementes e toca num ponto mais abrangente da propriedade intelectual. Um medicamento que salva vidas deve poder ser colocado a um preço que impede a maioria das pessoas de o comprar, como se viu recentemente nos EUA? E se as empresas não tiverem a proteção de patentes, investirão recursos a desenvolver um produto com o qual não podem lucrar livremente? Substitua medicamentos por sementes e fica claro o problema que enfrentamos. Por mais presentes que estejam no nosso dia a dia, linhas de código de um software não são tão importantes para a nossa sobrevivência como sementes.
“Obviamente que as patentes ajudam a estimular a inovação, isso não é novidade. Mas aquilo que acontece depois de a ‘empresa vencedora’ obter um enorme poder de mercado através dessa patente muda de indústria para indústria”, afirma Stiegert, apontando que o desenvolvimento de novas sementes patenteadas pode dar à Monsanto o poder para atuar transversalmente no setor, do lobby político à aquisição de rivais.
Vestager reconheceu isso mesmo, quando anunciou a aprovação da compra da Monsanto: “Precisamos de concorrência para assegurar que os agricultores têm uma escolha de diferentes variedades de sementes e pesticidas a preços competitivos, para impulsionar as empresas a inovarem em agricultura digital e para continuar a desenvolver novos produtos que vão ao encontro dos elevados parâmetros regulatórios europeus.” Os riscos são reais, mas ainda não se estão a materializar ou, pelo menos, ainda não em todo o mundo. Edward Mabaya, professor na Universidade de Cornell e especialista no mercado africano de sementes, explica à EXAME que 80% das plantações do continente ainda são feitas com sementes guardadas pelos agricultores. “Muitos dos pequenos agricultores estão a experimentar pela primeira vez ‘sementes melhoradas’. A fragmentação da agroecologia africana em conjunto com a diversidade dos alimentos básicos e a debilidade das infraestruturas de transporte em muitos países ainda favorecem pequenas empresas domésticas de sementes sobre grandes multinacionais. Além disso, grande parte da investigação e do desenvolvimento de colheitas melhoradas em África continua no domínio público.”
África é importante para este debate porque nenhuma região está tão vulnerável a mudanças na cadeia alimentar como o continente que, sozinho, será responsável por mais de metade do crescimento da população mundial. Dentro de 25 anos, haverá mais dois mil milhões de bocas para alimentar num planeta que chega a agosto tendo já consumido todos os recursos naturais a que tem direito “natural” durante um ano inteiro.
Quem controla as sementes controlará a forma como o mundo será capaz de responder a estes desafios hercúleos. Colocar nas mãos de meia dúzia de gestores uma parte relevante da nossa soberania e do nosso futuro alimentar deixa muitas pessoas nervosas. “Estamos a permitir que uma grande empresa decida aquilo que, em última análise, estará disponível em todo o sistema de alimentação global”, diz Stiegert à AFP. “E isso é um problema.”
Porque é a Monsanto tão odiada?
A empresa que a Bayer quer comprar está há muito debaixo do fogo dos ativistasDo Vietname às sementes É muitas vezes uma luta a dois com a Goldman Sachs: qual é a empresa mais odiada do mundo? Com manifestações frequentes em todo o planeta, a Monsanto tem bons argumentos para reivindicar o título. Quando foi fundada, em 1901, começou por produzir o adoçante sacarina, tendo virado a sua produção para os agroquímicos a partir de 1945. Duas décadas depois, deixaria a sua impressão digital na História, ao produzir, entre 1965 e 1969, o Agent Orange, um dos principais químicos utilizados pelos EUA na guerra com o Vietname, num total de 50 milhões de litros. Segundo
o governo vietnamita, essas substâncias foram responsáveis pela morte ou lesão grave de 400 mil pessoas e por quase meio milhão de crianças com deficiências à nascença. Mas a polémica com a empresa não se fica pelo tempo de guerra. Na década de 70, a Monsanto
começa a vender Roundup, que se tornaria o herbicida mais popular do mundo. O salto seguinte foi desenvolver sementes geneticamente modificadas para resistir ao glifosato, a substância ativa do Roundup. Passou, assim, a ser possível vender um pacote de um herbicida altamente agressivo mas que poupa as colheitas. Em 2015, um estudo da OMS concluiu que o glifosato é “provavelmente cancerígeno para os humanos”.