Pensemos num objeto banal. Numa banana, por exemplo. Ou melhor, numa maçã. Que seja uma maçã. Essa maçã é inteiramente verde em agosto, inteiramente vermelha em setembro. Uma e a mesma maçã muda de cor, deixando de ter uma qualidade e passando a ter outra.
O que tem isto de desconcertante? Talvez nada, até nos darmos conta de que uma e a mesma coisa não pode ter qualidades incompatíveis. A esta ideia corresponde um princípio cristalino sobre identidade: se x é y (se x e y são idênticos, se são um só objeto), então x e y têm precisamente as mesmas qualidades. Também podemos dizer, o que é equivalente: se x e y não tiverem precisamente as mesmas qualidades (se x tiver uma qualidade que y não tem, ou vice-versa), então x não será y. Nesse caso, x e y serão objetos distintos.
E pronto, está criada a confusão. Se a maçã de agosto e a maçã de setembro têm qualidades incompatíveis, então não são a mesma maçã! A primeira não mudou. Deixou de existir e uma maçã vermelha, outra maçã, tomou o seu lugar. Não é fácil acreditar nisto. Mas como conciliar a mudança qualitativa com a identidade ao longo do tempo?
Para David Hume, não há conciliação possível. Só objetos “constantes e imutáveis”, diz-nos, retêm a sua identidade ao longo do tempo. Esta perspetiva levou Hume a asseverar que a identidade pessoal é uma ficção que a nossa imaginação engendra.
Passemos de maçãs a pessoas, então, e consideremos um certo homem numa certa semana. Esse homem, Adão, está absolutamente triste à segunda-feira e fica absolutamente alegre quando chega a sexta-feira. Hume diria que, em rigor, o Adão de segunda-feira e o Adão de sexta-feira não são a mesma pessoa. Pois como pode uma e a mesma pessoa estar triste, absolutamente triste, e alegre, absolutamente alegre?
Acreditar que uma pessoa deixa de existir quando muda qualitativamente, o que acontece a cada instante, é tão difícil que o próprio Hume concedeu que não podemos escapar ao erro de supor o contrário. De facto, que nós próprios já existíamos há um ano, há um dia, há um segundo, não parece nada ser obra da nossa imaginação. E será mesmo um erro supor que a nossa identidade ao longo do tempo não é fictícia? Seria precipitado conceder a Hume a incompatibilidade entre a mudança de um objeto e a sua persistência no tempo.
Voltemos, pois, à nossa modesta maçã. Uma hipótese será alegar que as qualidades em causa na sua mudança não são simplesmente a “verdidade” (perdoem-me o neologismo, mas não há palavra para a propriedade de ser verde) e a “vermelhidade” (lamento, mas “vermelhidão” sugere tecidos inflamados). Não, as qualidades são antes verdidade-em-agosto e vermelhidade-em-setembro. Ora, estas qualidades não são incompatíveis, pelo que um e o mesmo objeto pode ter ambas sem ferir a lógica da identidade.
Há um problema nesta hipótese. Ela vai contra a noção comum de mudança. Quando um objeto muda, não significa isso que deixou de ter uma certa qualidade e que passou a ter outra, incompatível com a primeira? Se as qualidades em questão forem verdidade-em-agosto e vermelhidade-em-setembro, parece não haver mudança alguma, já que a maçã não deixou de ter a primeira para passar a ter a segunda. Mesmo em setembro, não deixa de ser verdade que a maçã é vermelha-em-agosto.
Há outro problema na mesma hipótese. Quem o assinalou foi David Lewis, um filósofo pouco conhecido fora da filosofia, mas que muito provavelmente é o metafísico mais criativo do século passado. Admitamos que a verdidade e a vermelhidade são temporárias intrínsecas — temporárias, porque são qualidades que um objeto pode ter temporariamente; intrínsecas, porque um objeto as tem “em si”, independentemente de como se relaciona com outros objetos. Ora, a hipótese em apreço faz da verdidade e da vermelhidade relações disfarçadas, mais precisamente relações com períodos de tempo, e assim falha porque não capta a intrinsicidade destas qualidades.
Que alternativa propõe Lewis? É uma alternativa estranha, devo avisar-vos. Para Lewis, os objetos persistem no tempo como se estendem no espaço. Uma macieira, por exemplo, estende-se no espaço tendo partes (espaciais, claro) situadas em diversos lugares: tem folhas e frutos em certos lugares, ramos noutros lugares, mais abaixo um tronco, raízes ainda mais abaixo. Do mesmo modo, alega Lewis, a macieira persiste no tempo tendo partes temporais situadas em diversos momentos ou períodos. Ou seja — e isto é que é estranho —, a macieira não está inteiramente presente em cada um dos momentos da sua existência. Há que encará-la como um objeto tetradimensional, e não tridimensional, há que imaginá-la como uma “lagarta espácio-temporal”, feita de um agregado de partes temporais que começa com um rebento e termina com um tronco seco, sem folhas nem frutos.
Lewis convida-nos a olhar para os objetos comuns, e também para as pessoas, à maneira dos tralfamadorianos de Kurt Vonnegut. “Billy Pilgrim”, escreve Vonnegut no seu Matadouro Cinco, referindo-se ao protagonista desta obra-prima da ficção científica, “diz que o Universo não parece um grande conjunto de pequenos pontos brilhantes às criaturas de Tralfamadore. As criaturas conseguem ver onde cada estrela esteve e onde virá a estar, pelo que o céu está cheio de esparguete rarefeito e luminoso. E os tralfamadorianos tão-pouco veem os seres humanos como criaturas bípedes. Veem-nos como criaturas milípedes – ‘com pernas de bebé numa ponta e pernas de velho na outra ponta’, diz Billy Pilgrim.”
O que vale para a macieira vale para a nossa maçã: também ela é um agregado de partes temporais de maçã. Mas como nos ajuda isto a perceber a sua mudança? Lewis diria que a maçã muda de cor em virtude de ter partes temporais diversamente coloridas. Tem partes temporais verdes em agosto, partes temporais vermelhas em setembro. E Adão? Adão tem partes temporais tristes na segunda-feira, partes temporais alegres na sexta-feira. Nisto, no facto de ele ter partes temporais diversamente dispostas, consiste a sua mudança.
Na explicação de Lewis, as qualidades envolvidas na mudança (verdidade e vermelhidade, tristeza e alegria) são genuinamente incompatíveis e não se apresentam como relações com períodos de tempo. Ainda bem. Mas será que temos razões suficientes para aceitar a perspetiva lewisiana? Peguemos imaginativamente na nossa maçã imaginária, imaginando-nos em setembro. Será que o objeto vermelho que temos na mão é apenas uma parte da maçã? E será a mão que observamos apenas uma parte temporal de mão?
Talvez não. Há uma forma menos extraterrestre de entender a mudança. Podemos dizer que as coisas mudam tendo de modos diferentes qualidades incompatíveis. De modos diferentes como? De modos temporalmente diferentes. Segundo esta perspetiva adverbial, a maçã é agostamente verde e setembramente vermelha. De Adão, podemos afirmar que está segunda-feiramente triste e sexta-feiramente alegre. Assim, sem recorrer a partes temporais, podemos explicar como uma e a mesma coisa muda, tendo qualidades verdadeiramente incompatíveis em momentos diferentes. Mas será correta a perspetiva adverbial? Ou será melhor conceber a mudança à maneira dos tralfamadorianos?
NOTAS
1. David Hume apresenta a sua perspetiva sobre a identidade pessoal no Tratado da Natureza Humana (Livro I, Parte IV, Secção VI).
2. A perspetiva de David Lewis sobre as temporárias intrínsecas encontra-se na Secção 4.2. de On the Plurality of Worlds. Note-se que é controverso que qualidades como a verdidade e a vermelhidade sejam intrínsecas. Os exemplos de Lewis respeitam não a cores, mas a formas geométricas.
3. Quer saber mais sobre este tema? Então leia o meu artigo sobre persistência! Deu-me imenso trabalho, mas fiquei contente com o resultado.
Texto convertido pelo conversor da Porto Editora, respeitando o Acordo Ortográfico de 1990.