Senhor Presidente da República:
Eu sou a irmã da Sara e escrevo-lhe duas letrinhas porque ontem a minha mãe disse ao meu pai que só o senhor nos podia valer. Mas eu já sei que ela não vai escrever e o meu pai também não porque eu nunca os vi a pegar numa esferográfica e como Várzea de Ovelha e Aliviada é muito longe de Lisboa e nós não temos carro, também não vão aí conversar consigo. Eu vou explicar-lhe Senhor Presidente. A minha irmã Sara nasceu depois de mim mas eu não me lembro de nada. Ela nasceu no hospital de Amarante. A minha mãe diz que ela nasceu toda pretinha e mandaram-na logo numa ambulância para o Porto e ficou lá um ror de tempo. Parece que já estava muito doente. Depois a minha mãe trouxe-a para casa e nunca mais me ligaram nenhuma. Era a menina isto, a menina aquilo, a minha mãe sempre a chorar, o meu pai calado e sempre a beber. A Sara já tem seis anos e até anda na escola, mas não consegue andar, não fala. A minha mãe tem que a lavar, vestir, dar-lhe a comida na boca, muda-lhe as fraldas e até dorme com ela na cama a maior parte das noites. Agora começou a ter uns ataques em que treme toda e deita uma espuma pela boca. Às vezes está uma semana inteira sem lhe dar, mas depois na outra dá-lhe dois ou três e parece que morreu alguém, a minha mãe nem me deixa ver a novela. Eu não percebo nada porque ela até toma dois medicamentos e a minha mãe nunca se esquece de lhos dar, mas mesmo assim tem os ataques. Inda por cima tem que ir a Amarante fazer ginástica a uma clínica e a minha mãe tem que ir sempre com ela na ambulância e já foi despedida no trabalho. Outro dia na escola a professora perguntou qual era o emprego dos nossos pais e eu disse que o emprego da minha mãe era tomar conta da minha irmã. Começaram todos a rir de mim, disseram que aquilo não era nenhum emprego porque ela não ganhava um ordenado. Mas eu acho mesmo que é um emprego porque ela trabalha dia e noite. É pena é não lhe pagarem. E agora a Sara cresceu e já não cabe na cadeira de rodas e está à espera há um ror de tempo de outra e a minha mãe tem que andar com ela ao colo e está doente das costas. Eu até já lhe dei o dinheiro que tinha no mealheiro. Eu estava a juntar para comprar uma bicicleta, mas também nunca mais consigo e então pode ser que ao menos ajude para a cadeira da Sara. Eu só queria que a minha mãe não chorasse mais. Também queria que o meu pai não fosse embora que ele, senhor presidente, está sempre com ameaços prá minha mãe, a dizer que está farto de viver connosco. Diz que já não aguenta ver a minha mãe a chorar. E diz que ela não lhe serve para nada, que nem na cama dorme com ele. Eles julgam que eu não oiço, mas o meu quarto fica ao lado da cozinha e oiço-os a ralhar de noite. Senhor presidente, eu sei que o senhor tem muito trabalho e que o estão sempre a chatear, mas o senhor não terá lá por Lisboa uma cadeira de rodas que sirva à minha irmã? Senhor presidente e já agora, porque é que a Sara não pode fazer a ginástica cá em Várzea Ovelha e Aliviada? O senhor que conhece tanta gente não pode mandar para cá um terapeuta para tratar a minha irmã? Assim a minha mãe já não precisava de ir com ela na ambulância e não perdia o emprego. E se ela deixasse de chorar, pode ser que o meu pai não fosse embora. Senhor presidente, faça o que puder pela Sara e pela minha mãe, veja lá se descobre aí uma cadeirita para a minha mãe ficar melhor das costas. Olhe senhor presidente e já agora, eu sei que o senhor tem dois filhos e já estão grandes, que eu os vi na televisão outro dia. O senhor não terá aí na sua garagem uma bicicleta pequena que já não lhes sirva? É que já agora, senhor presidente, aproveitava a encomenda e quando mandasse a cadeira na carreira, mandava junto a bicicleta para mim. Adeus senhor presidente, continue simpático para toda a gente e cumprimentos para a sua namorada e prós seus filhos, desta que não conhece
Irmã da Sara
Turiz, 7 de Abril de 2019
(Todas as histórias que envolvem doentes são ficção, baseada em casos reais e na prática clínica da autora)