António Lobo Antunes

António Lobo Antunes

Não olhes para trás que para trás mija a burra
António Lobo Antunes

Não olhes para trás que para trás mija a burra

Nada a não ser esta casa, cheia de silêncio e penumbra, e tu às voltas com o teu livro. Para quê? Já existem tantos livros, não é, quem consegue fazer--se ouvir acima deste ruído monótono? Vais à janela e um cão lá em baixo, na espécie de jardim, à volta da casa, que ora cheira ora se suspende a pensar. Se fosses cão em que pensarias? Passa-te tanta coisa pela cabeça

Escrever
António Lobo Antunes

Escrever

Estás de facto sozinho. Os ruídos da casa desapareceram. A presença dos outros desapareceu. O tempo é apenas um ponteiro que não aponta nada ou aponta mil caminhos, o que é a mesma coisa. E o caminho não passa de um vazio cheio de sons que se torna necessário encontrar o único som autêntico, o som inicial, a tua voz oculta por mil ecos aliás indecifráveis ou aparentemente sem nexo

Tocar-te com um dedo na pontinha do nariz
António Lobo Antunes

Tocar-te com um dedo na pontinha do nariz

Devia ter chamado Eva às três mas aí intervinha a subtileza da minha mãe – E se ela for feia?porque Eva um nome pesado, ser Eva e feia seria uma desgraça, quem neste mundo aguenta uma Eva feia e tinha razão, quem neste mundo aguenta uma Eva parva e tinha razão, embora não acreditasse que, de mim, nascessem mulheres feias ou parvas, os meus cromossomas não são feios nem parvos

Claudio
António Lobo Antunes

Claudio

Agora no México achei-te melancólico e inquieto, distante, cansado, e vim de lá a pensar muito em ti, amigo, que é uma palavra que não digo muitas vezes. Amigo. Sempre foste um homem complexo, por vezes contraditório, por vezes imprevisível. Ou seja, somos um bocado parecidos. E gostava de ti, gosto de ti, mesmo da tua ironia, da tua ocasional ferocidade. Nada é fácil, não é, tudo é excepcional

O livro novo
António Lobo Antunes

O livro novo

Um livro não é uma prenda que cai do céu, é uma coisa conquistada migalha a migalha, o resultado, pelo menos para mim, de uma paciência infinita, um – Anda lá rapaz sem termo à vista. E o rapaz lá vai, cheio de cuidado com os sítios onde pôr os pés, dado que tudo escorrega à minha volta. Ao mesmo tempo gosto destes desafios, desta luta. Lembra-me a guerra e eu não gosto de perder, não me resigno a perder

A lua vista pelos mortos
António Lobo Antunes

A lua vista pelos mortos

Agora, de repente, pareceu-me ouvir os pinheiros da Beira Alta, distinguir a minha avó numa casa qualquer lá em baixo, acenando-me. Os seus imensos olhos azuis nunca me ralharam. Esperam apenas. O quê? Hei-de voltar, senhora, palavra de honra que hei-de voltar uma tarde em que os sinos de São Miguel chamem mais baixinho

Foi assim
António Lobo Antunes

Foi assim

Eis-me aqui em Lisboa mas nunca saí inteiramente de lá. Já não tenho camuflado, já não tenho arma, já não tenho cabelo loiro. O que tenho eu então? O que aconteceu à minha G3, o que me aconteceu a mim?

A partir dos cinquenta quem manda é o cavalo
António Lobo Antunes

A partir dos cinquenta quem manda é o cavalo

Como era o nome do muralista? Rivera, isso. Ainda cá canta, o México, nem o cavalo me desvia dele, palavra de honra. Depois dos cinquenta é o cavalo quem manda mas eu continuo no selim. Com o futuro talvez não à minha frente, atrás, mas continuo no selim. Por mais esforços que o tempo faça não me tira daqui. Posso baloiçar, posso escorregar mas aguento. Torto mas aguento. Quase a tombar mas aguento

Os livros. Nós – 4 (crónicas pequeninas)
Opinião

Os livros. Nós – 4 (crónicas pequeninas)

Trabalhei como um danado, diariamente, anos a fio, de modo que me sinto no direito de repetir a frase de Bocage, depois de dizer aos outros um poema seu: – Isto é meu, isto não morre que é a única eternidade a que posso aspirar e que, de qualquer maneira, não me servirá de nada

O meu pai  Nós – 3 (crónicas pequeninas)
António Lobo Antunes

O meu pai Nós – 3 (crónicas pequeninas)

À hora do jantar interrompeu a música, sentou-se na cabeceira da mesa, no lugar dele, esperou que chegássemos com a mãe e ocupássemos os nossos lugares, tirou os óculos escuros que enfiou no bolso, parecia sereno e distante, quase indiferente, praticamente não tocou na sopa nem no que havia para comer a seguir, e ali ficámos todos calados durante o tempo da refeição

Crónica familiar Nós – 2 (crónicas pequeninas)
Opinião

Crónica familiar Nós – 2 (crónicas pequeninas)

Por baixo da tua aparente distância, tu que algumas pessoas consideravam arrogante, havia um coração de oiro e uma discreta bondade sem fim. A tua relação com o pai era complexa e competitiva. Eu nunca entendi bem essa fraqueza tua por me estar nas tintas para uma opinião que não fosse a minha. Fiz sempre o que queria e não me interessavam guerras inúteis

O meu avô e eu Nós – 1 (crónicas pequeninas)
António Lobo Antunes

O meu avô e eu Nós – 1 (crónicas pequeninas)

A nossa viagem de volta a casa passou-se num silêncio absoluto. As últimas palavras de André Brun foram – Não deixes que me façam uma estátua equestre, quero uma estátua divanestre e piscaram o olho um ao outro ao imaginarem André Brun estendido num divã de bronze, todo repimpadinho

Ontem voltei a ser feliz
Opinião

Ontem voltei a ser feliz

E sentou-se de pistola na mão, e depois abraçou-me, e depois desatou a chorar porque a vida não é verdade, porque a vida senhor doutor, porque a vida, porque a vida, porque a vida, o enfermeiro pegou na pistola

Zé
António Lobo Antunes

Ambos pouco tolerantes aceitávamos sem qualquer dificuldade o feitio complicado do outro. O Zé costuma dizer – Posso ser amigo de um pintor, de um pedreiro, de um médico. Para ser amigo de um escritor tenho que admirá-lo. E, (...), aceitávamos o outro e criámos uma relação indestrutível

Ai madre, moiro de amor
António Lobo Antunes

Ai madre, moiro de amor

Que esquisito ser bicho, que esquisito ser pessoa também, tomar banho numa selha, mover a bomba da água: o Vergílio parava a carroça sempre ao lado do poço, às vezes deixava-me pegar um bocadinho na rédea, o João não tinha medo das vespas

A gente os três
António Lobo Antunes

A gente os três

Numa das ocasiões em que lá foi espreitou a minha turma pela janela e voltou aterrada porque eu me achava sentado ao contrário na carteira, a olhar para o tecto. Segundo ela a setora de Francês perguntou-lhe – Como é que eu podia chumbar aqueles olhos azuis? e a minha mãe chegou a casa capaz de estrangular-me, a repetir advérbios de modo que levou a minha infância a atirar-me à cara: – Francamente

A viagem à China
António Lobo Antunes

A viagem à China

Meu Deus o que eu teria gostado de, aos cinco anos, viajar à China com o meu pai. Ou sozinho. O problema é que não conheço muito bem o caminho, não estou certo se para a China se vira antes ou depois do Marquês de Pombal, se é necessário passar pelo Areeiro, se há uma seta nos Olivais com a palavra China por baixo

MÃE
António Lobo Antunes

MÃE

Os nossos mal entendidos residiam nisso: eu só me preocupava com o centro da Terra e a minha Mãe queria que eu fosse uma pessoa responsável e séria. Compreendo-a muito bem: no seu lugar faria os impossíveis para impedir um filho meu de se tornar uma espécie de Ícaro a tombar, de asas desfeitas, no negrume do desconhecido

O dentista
Opinião

O dentista

– Estás a ver esta tenaz? É canja: apontas o instrumento à boca, apanhas o que estiver a chatear, puxas para fora e acabam-se os incómodos. Se por acaso o doente protestar enfias-lhe o joelho nas costelas, que é como se faz lá em Portugal e aquilo cai-te logo na mãozinha que é uma beleza

Manos
António Lobo Antunes

Manos

Com o Pedro, por exemplo, os momentos em que dialogávamos mais eram a seguir ao jantar das quintas-feiras, quando íamos fazer chichi contra a cascata à esquerda do portão, ambos olharmos para baixo, lado a lado, no escuro. Fazer chichi acompanhado é o acto de amizade mais profundo que conheço

O doente
António Lobo Antunes

O doente

Talvez seja completamente idiota dizer isto mas dei por mim a gostar muito de si. Há uma dor aqui no quarto, filho, mas não sei se sou eu que a tenho. E o meu coração entendeu que daria a vida por mim. Graças a Deus não foi preciso