Cozinheiro há 32 anos, Vítor Sobral está há uma década a crescer no bairro de Campo de Ourique, em Lisboa. Também já se expandiu para Luanda, de onde se retirou recentemente, e para São Paulo, cidade brasileira onde ainda tem uma padaria e dois restaurantes. Pela primeira vez, prepara-se para abrir o restaurante Talho da Esquina, fora da sua zona de conforto – fica em frente à Assembleia da República. E haverá outra Padaria da Esquina, perto do estádio do Belenenses (já tinha arriscado um balcão no Mercado de Alvalade). Ao mesmo tempo que se realiza nas suas várias cozinhas de matriz portuguesa com técnica arrojada (ainda tem a Tasca, a Peixaria e o Balcão), é autor e coautor de 24 livros. O último, que ainda não saiu, será sobre azeite. A propósito, revele-se o truque: é em azeite que coze carne, peixe e legumes, tapando-os com um pano.
O que vamos encontrar no Talho da Esquina?
Sobretudo, o que os portugueses estão habituados a comer na grelha. Haverá alguma inovação, claro, como o rim grelhado com vinagrete de chocolate negro, e pratos do dia, que serão de panela.
Porque apostou num restaurante de carne, quando se fala tanto na necessidade de reduzir a proteína animal?
Não é verdade que devamos diminuir o consumo de carne; só temos de diminuir o consumo de carne ruim. Como é que as pessoas não indagam a discrepância de preços entre um frango de aviário, de €3, um do campo, que custa €12, e outro biológico, que fica a €26 o quilo? Se calhar, não devíamos optar pelo de €3, mas pelo mais caro.
Só que essa opção não estará ao alcance de todos...
Está, se comermos cinco vezes por semana batatas e arroz e legumes e massa. E quando for para ingerir proteína, escolhermos uma boa. Dizer que não nos alimentamos bem porque não temos dinheiro é uma grande mentira. Até proíbo os meus funcionários de comprarem carne
de aviário para comerem.
Portanto, só haverá boa proteína no restaurante?
Além disso, teremos uma vertente provocatória: os vegetarianos não vão a restaurantes de carne, mas neste caso poderão ir, porque a maior parte das guarnições dos pratos serão vegetais, como uma salada de pimentos grelhados, temperada com azeite e vinagre e hortelã.
Que práticas estimula nos seus restaurantes, no sentido de aumentar a sustentabilidade?
Hoje temos um comportamento um bocadinho burguês, mas, se começarmos a fazer contas, o desperdício diminui imediatamente. Na cozinha, tento aproveitar tudo aquilo que uso. Faço a separação dos lixos, claro, e o óleo é recolhido para reutilizar. Em casa, quando vamos cozinhar um arroz de frango, sem ter a certeza de que toda a gente vai aparecer, devemos manter o frango e o arroz em tachos separados. Assim, no caso de sobrar, podemos fazer uns rolinhos de arroz com frango. Gosto muito de peixe cozido: sempre que sobra, vira salada. O meu filho, com 3 anos, adora.
O que mudou, em termos gastronómicos, desde que a Tasca da Esquina existe, há dez anos?
Quando abri, era praticamente o único com estas características; hoje já existem vários, embora não se encontrem muitos com uma década de existência. Por exemplo, o primeiro restaurante em que fui responsável pela cozinha, o Alcântara Café, só abre para eventos.
Como pensa ocupar os próximos dez anos?
Criando mais dois ou três conceitos e ficar-me por aí. Vou deixar cair a ideia da casa de fados, porque não posso ir a todas. Mas ainda hei de ter um bar ou uma taberna portuguesa. E gostava mesmo de abrir um restaurante muito tradicional, conservador no bom sentido, com uma técnica evoluída. Nunca serviria uma salada de tomate sem o descascar nem marinar a cebola durante 30 minutos em vinagre e sal.
Em 2017, faturou €13 milhões. Qual é o seu limite?
Tenho crescido de forma dolorosa, sempre com capital próprio ou recorrendo à banca. Ser empreendedor em Portugal é extremamente difícil.
A má experiência quando foi sócio da Gare Tejo traumatizou-o?
Já tive mais do que uma má experiência, na verdade, mas continuo a gostar muito de criar. Como já não caminho para novo, e apesar de ter muita força, devo abrandar e deixar de ser empreendedor.
No final da refeição, entrega a fatura aos clientes, mesmo que eles não a peçam. Já era assim antes da fatura da sorte?
Não gosto muito de pagar impostos, especialmente se tiver de o fazer pelos que falham. Mas é uma obrigação, como cidadão, empresário e profissional. E faço gala de mostrar que tenho tudo em ordem.
Durante muitos anos, insurgiu–se contra os 23% na restauração. Agora anda mais tranquilo?
Sem dúvida. Mas continuamos a pagar mal aos nossos funcionários e a ser muito baratos. Se compararmos uma refeição como a que sirvo na Tasca da Esquina com outra do mesmo calibre em Madrid, Barcelona, Londres ou Paris, vamos concluir que estamos a dar comida.
O nível de vida é muito diferente nessas capitais.
É verdade. Mas a mim custa-me, como empresário, não poder pagar mais aos meus colaboradores. Sem querer dar uma de esquerdista, como em tempos já fui, digo que é muito fácil oferecer ordenados de €600 e ficar rico.
Depreendo então que essa não seja a prática nos seus restaurantes…
Aqui, garantidamente, pago acima da média. E tento ter o maior cuidado com as mais de 100 pessoas que trabalham para mim.
Está farto de publicar livros. O que o impele para a escrita? Vaidade?
É mais uma questão autoral, para conseguir passar o meu legado, a minha matriz, sobretudo a não profissionais que queiram cozinhar melhor em casa. Tenho consciência
de que ajudei muitas pessoas e as suas famílias, com os livros, e também quando dava formação.
Incomoda-o ser constantemente citado pelos seus pares como um exemplo, ser até comendador, mas não ter uma Estrela Michelin?
Fico feliz por ter contribuído para a imagem charmosa que os cozinheiros têm hoje – quando comecei não era nada assim. No entanto, nenhum dos meus restaurantes é sequer mencionado no guia. Sinceramente, isso não me incomoda nada.
Isso é mesmo sentido ou deu a resposta que tinha de dar?
Considero que os inspetores do guia não têm capacidade para avaliar os cozinheiros portugueses.
As Estrelas por cá estão mal atribuídas, é isso?
Pelo contrário. Muitos dos chefes deveriam ter mais do que têm. Hoje, Portugal tem cozinheiros muito bem preparados, coisa que não existia quando comecei a trabalhar. Essas pessoas conhecem bem as gastronomias de outros países, enquanto pouca gente conhece a nossa. O [Ferran] Adrià não vinha a Portugal há 19 anos. Já eu, não há ano em que não vá a Espanha, a Itália, a França, pois quero continuar informado. Já podíamos pedir à Michelin para ter um guia só nosso. Não temos massa crítica turística? Até posso aceitar que não existam muitos restaurantes com três Estrelas por cá, mas não haver nenhum?
A quem atribuiria três Estrelas?
O José Avillez já as merecia, pela consistência do trabalho dele.
O que faria se perdesse o olfato?
Seria complicado. Muitas vezes, com o nariz, sabemos se um tacho de comida está salgado ou se as coisas estão cozidas.
Pior do que perder o paladar?
Pior… O nariz é mais fiável do que o paladar – este pode ser iludido.
Se tivesse de eleger um prato para comer até ao final dos seus dias, qual seria?
É muito difícil de responder. Mas se hoje, por uma razão de saúde, tivesse de deixar de comer frutos do mar ou peixe, iria sofrer muito.
A Padaria da Esquina demorou imenso tempo a abrir em Portugal, tendo finalmente inaugurado há um ano. Desde então, já mudou os hábitos dos lisboetas?
Deveria responder a isso de uma forma política e empresarial, só que vou dizer a verdade. A coisa não corre mal, mas a Padaria não entrou nos hábitos – nem a nossa nem as outras que agora existem. Um bom pão é probiótico. E não venham outra vez com a questão do dinheiro, porque o bom dura mais e dá para tudo (açordas, torradas…) e o outro manda–se logo fora, por isso fica mais caro.
Ainda é embaixador do programa Portugal Sou Eu?
Neste momento, não. E para voltar a sê-lo, terei de sê-lo de verdade e não só de nome.
Era embaixador a fingir?
Sim, era fingido, porque as coisas não foram feitas da forma como estavam acordadas nem como deveriam ter sido executadas.
Como foram então?
Vamos dar uma segunda oportunidade ao programa. Caso continue na mesma, serei o primeiro a falar,
e só sobre o dinheiro para divulgar Portugal lá fora, que é mal gasto. Sempre defendi que a melhor maneira de nos promovermos é trazendo cá os formadores de opinião, para lhes mostrarmos o que temos de bom.
Isso já se faz há uns anos.
Pouco. E com as verbas que se gastam lá fora, poderíamos fazer muito mais por cá. Dou-lhe um exemplo: se pagássemos ao Ferran Adrià para abrir um restaurante nos Açores, já imaginou a quantidade de gente que não iria lá?
A que sabe Portugal?
Se pegarmos numa frigideira, com um bocadinho de azeite, alho, uma folha de louro e dermos um golpe de vinagre ou de vinho branco, isso garantidamente que sabe a Portugal. Em sentido figurado, o nosso país é emoção, brilho (por causa do sol que temos), paisagem, comida e as pessoas com quem partilhamos isto tudo.
São essas coisas que o inspiram na cozinha?
As emoções em si, o amor, a família, a amizade. Valorizo muito cozinhar para a família, para a pessoa de quem gosto – uma das minhas artimanhas é conquistar pelo estômago. É muito importante entrar numa sala e sentir que as pessoas estão felizes, depois de comerem algo que eu fiz.
Mantém o seu mau feitio?
Não sei porque tenho essa fama. Mas se for por dizer às pessoas o que penso, então mantenho.
Já não pertence à maçonaria ou é sítio de onde nunca se sai?
Por acaso, continuo a pertencer, embora a minha loja esteja em lume brando. A razão pela qual aderi teve que ver com o convívio com as pessoas e não com a ideia que existe acerca dessa organização. Trata-se de um grupo de pessoas que se junta e cada um traz o apport da sua área à mesa. Na minha experiência, não há tráfico de influências.
Mas relaciona-se bem com o poder…
É verdade. E, por isso mesmo, digo aquilo que penso.
E o que lhe responde o poder?
A maior parte das vezes, ouve-me, que eu não digo coisas descabidas.
E a política, interessa-lhe?
Como praticante, não. Mas sou preocupado com a política e acredito em pessoas. Se hoje acredito no António Costa, enquanto primeiro-ministro, é porque conheço a pessoa.
Vai votar nele?
Garantidamente.
Como gere os seus três filhos, de idades muito distintas(dos 3 aos 30 anos) e de mães diferentes?
Está toda a gente bem. Ainda há pouco tempo, o meu filho mais novo fez anos e estivemos todos juntos. Também já tenho uma neta de 3 anos e meio, que é mais velha do que o tio.
O Rodrigo, o mais velho, é o responsável pela Peixaria da Esquina. É uma boa vida para recomendar a um filho?
O importante é que se sinta feliz neste trabalho. Ele teve possibilidades de fazer outra coisa na vida e, nessa altura, impulsionei-o, mas depois ele insistiu nesta vida.
Como sensibiliza os seus filhos para uma alimentação saudável?
Eles já foram ao McDonald’s, mas nenhum bebe refrigerantes nem come coisas ruins. Alimentam-se todos bem, sem grande esforço.
Não tem vergonha de ser visto num fast food [risos]?
Tenho um bocado [risos]. Noutro dia fui lá, mas optei pelo McDrive.