O que acontece às nossas contas de email e a toda a nossa presença online quando morremos? Podemos não pensar muito nisso, mas talvez seja hora de começar a mudar. Os gigantes tecnológicos estão a apropriar-se das nossas memórias e, se queremos assegurar a privacidade do nosso património digital em vida, temos de avançar agora. O alerta é da psicóloga norte-americana Elaine Kasket, 48 anos, que estudou o assunto e acaba de lançar o livro All the Ghosts in the Machine: Illusions of Immortality in the Digital Age. Na entrevista que concedeu à VISÃO, a clínica, autora e líder da Digital Legacy Association defende a criação de mecanismos éticos e legais para as questões do luto e das heranças digitais. Quanto a nós, cidadãos digitais, Elaine recomenda que tomemos consciência de que é necessário desenvolver novos comportamentos. Por exemplo, limpar a “casa” regularmente e guardar o que queremos preservar em suporte físico, sendo essa a melhor via de prevenir que os nossos dados se pulverizem ou passem para a mão errada.
O que a levou a começar a investigar este assunto?
Entrei no Facebook em 2006, ano em que o Facebook e o Twitter descolaram, o YouTube fez um ano de vida e a revista Time elegeu o cidadão comum para figura do ano. As pessoas começaram a produzir, a armazenar e a partilhar na web 2.0 e, durante uma busca de pessoas do meu passado, vi o perfil de uma mulher falecida com nome idêntico à que eu procurava e um memorial. A curiosidade levou-me a explorar este território desconhecido e a tentar perceber melhor como os vivos interagiam com os mortos nas redes sociais.
O que distingue a dinâmica que se estabelece no cemitério digital, face aos que conhecemos no mundo físico?
Tradicionalmente, o luto e o acesso aos bens cabem à família e às pessoas próximas. Conhecidos e amigos tendem a ficar de fora. Com o networking das redes sociais, os amigos ganham vantagem no acesso a fotos, memórias, etc., e é a família que fica à margem. Falei com pessoas que queriam deixar a rede social mas que estavam relutantes em fazê-lo porque ficavam sem acesso ao cemitério, aos perfis das pessoas queridas e às memórias que lá estavam.
O que concluiu na sua investigação, depois de falar com empresas e utilizadores?
As tecnológicas estão a decidir como se deve preservar a memória e quem deve, ou não, ter acesso a ela. No mundo offline, a passagem de bens para os herdeiros é feita com as instituições e respeita o testamento, quando existe. No universo digital esta gestão é bem mais complexa, com cada vez mais pessoas em guerra legal pela gestão de contas na posse das tecnológicas. Muitas perderam a confiança, incapazes de aceder aos dados dos entes queridos após anos de diligências com as tecnológicas.
Não há um plano B se não acautelarmos o que fazer com o nosso espólio digital?
As empresas tecnológicas assumem o controlo dos dados dos vivos e dos mortos. Dizem às famílias e aos governos: “Nós é que fazemos as regras, à nossa maneira.” O assunto deve sair do âmbito académico para a sociedade civil. É legítimo perguntar se é ético as empresas interditarem o acesso deste material aos Estados ou o direito à proteção de dados do falecido, de acordo com os seus desejos ou por uma questão de dignidade. A nossa identidade digital não se resume a códigos, antes a dados cada vez mais vastos, sensíveis, complexos e identificáveis.
Pode dar um exemplo de complicações que daí resultem?
Uma mulher fica viúva, tem acesso aos códigos do marido e descobre que ele esteve com certa pessoa num certo local. Descobre o seu email e vai pedir-lhe contas. “Porque é que esteve com o meu marido nesta altura e neste sítio?” Isto é possível porque está tudo registado. Na Alemanha ficou conhecido o suicídio de uma jovem de 15 anos, porque os pais quiseram saber se ela estava a ser vítima de bullying na escola. O Facebook recusou por várias vezes o pedido de acesso às mensagens, e o tribunal entendeu que as mensagens equivaliam a cartas, mas não é a mesma coisa: os dados dela estão ligados a uma rede de pessoas vivas que também assinaram os termos e condições de uma plataforma que lhes garante privacidade. Os dados digitais dos mortos são parte do problema: a interligação não permite isolar este ou aquele segmento de informação.
Que risco pode haver em pensar que a informação online pública e privada há de se desvanecer, como nós?
É ingénuo pensar que os dados digitais morrem connosco, isso não vai acontecer. Mesmo que haja uma lista de palavras-chave e de preferências quanto ao que se deve manter ou apagar, não existem garantias legais de que os herdeiros acedam a elas, a menos que comecem a planear já o que fazer, até pelo risco de roubo de identidade e de perda de informações. Refiro-me a contas de email, perfis em redes sociais, registos financeiros, afetivos e outros.
Quais as medidas prioritárias a tomar a nível político e legal?
Sou favorável à memorialização dos perfis mal a pessoa morre, caso contrário o processo torna-se demasiado ambíguo. Cada luto é diferente e único. O direito a ser notificado sobre aniversários e outras definições deve caber às pessoas próximas. Não devem ser as corporações a definir o que é doloroso e a dizer o que está certo.
Porém, os utilizadores não parecem muito preocupados com os seus segredos digitais, do histórico de navegação a aplicações e afins.
Estamos a tornar-nos acumuladores digitais do que queremos e do que não queremos nos nossos dispositivos, sejam fotos, emails, conversas ou cookies. A nossa vida digital agrega quem somos para o mundo e o que escondemos dele, dados que, se descobertos, nos deixariam horrorizados. Por isso recomendo que sejam cautelosos quanto ao que captam, produzem e guardam em vida. Selecionem a informação que captam, editam, armazenam e partilham. Limpem a vossa casa digital com frequência. A informação que desejam perpetuar para quem fica deve ser guardada em formato físico, material, à moda antiga.
A que se refere quando fala da ilusão da imortalidade?
À ideia simplista de que o que está online fica lá para sempre. Não tenhamos ilusões quanto à garantia de espaço infinito ou de ser um lugar seguro pelo tempo que entendermos. As regras estão sempre a mudar e, embora as empresas digam que vão preservar os nossos dados para sempre, essa informação pode ficar fora dos servidores no espaço de cinco a dez anos. Em fevereiro, por exemplo, o Flickr entendeu que os servidores não podiam ter tantos dados. O hardware muda, o software e a linguagem de código também, as empresas entram em falência…
Então, porque lidamos com os nossos gadgets como se fossem uma mãe boa?
Comportamo-nos como bebés com brinquedos novos que não compreendemos, mas dos quais ficamos dependentes por nos tornarem a vida tão fácil. Após década e meia, o relacionamento com a tecnologia digital entra na crise da adolescência: “Tenho um grande apego face a ti, mas também te odeio e te rejeito.” E a perda da inocência – cerca de 70% das compras online são realizadas na Amazon. Mark Zuckerberg detém 60% das ações do Facebook – os valores e as decisões de um homem afetam milhares de milhões de pessoas.
Entretanto, acumulam-se perfis de mortos. Que vantagens têm?
Um estudo do Oxford Internet Institute estima que existam 4,9 mil milhões de “mortos-vivos” se o Facebook chegar ao fim do século (2100), ainda que ninguém acredite que continue a ter o poder que tem tido até agora. Julgo que venham a ter vantagens com esses perfis, sobre as quais não falam, seja o uso de históricos para terem benefícios comerciais ou para desenvolverem modelos de Inteligência Artificial. Porque têm em sua posse dados de milhões e milhões de utilizadores que já não existem? O Facebook assegura que não tem quaisquer incentivos económicos. Indaguei o que podia acontecer quando os dados dos mortos superassem os dos vivos. A resposta foi vaga: “Ah, para já não é um assunto, quando isso acontecer logo vemos.” Quando deixarem de ter vantagens e o cemitério começar a ficar maior do que o parque de diversões, os gigantes tecnológicos facilmente vão largar tudo e seguir em frente, sem quaisquer escrúpulos.
Estamos preparados para programas e aplicações que “ressuscitam” mortos com Inteligência Artificial a fim de “confortar” os vivos, como no episódio Be Right Back da série Black Mirror [Netflix]?
A influência contínua dos mortos na sociedade dos vivos existe. O historiador Philippe Ariès, que estudou as atitudes face à morte no Ocidente desde a Idade Média até hoje, falava de um aumento da personalização. As inscrições que se viam nas campas no tempo dos gregos e romanos voltaram a estar presentes no século XVIII: o culto de recordar os mortos, preservar o nome de família e a genealogia. Hoje, há uma explosão dessa tendência: morrer e continuar a ser falado, lembrado, visto e ouvido na comunidade. Nunca como hoje mortos e vivos estiveram tão ligados. Vale a pena perguntar: em nome de quê queremos ou precisamos de continuar a nossa identidade, passado o ponto da morte física? Não basta fazê-lo porque podemos e temos a tecnologia para isso.
A hiperpresença pós-morte assusta-a?
A mim? [Pausa.] Quando combinamos a aprendizagem da Inteligência Artificial com o perfil (dados) de alguém que existiu e admitirmos que essa entidade digital tem consciência e é capaz de resolver problemas complexos, temos, mais ainda do que agora, de definir qual é o estatuto legal dela. Isto leva a outra questão: como definimos Humanidade? Pela dimensão física ou pela inteligência, ou senciência, ou consciência? Por agora, os restos digitais que deixamos ainda não têm esta dimensão. Não estamos a falar do chatbot Replika, concebido há uns anos por uma investigadora russa, a partir dos dados que o amigo falecido tinha nos média. Quando os dois mundos colidirem, isso trará questões éticas muito sérias. No livro, dou o exemplo do holograma da Maria Callas que foi em digressão, levando muitas cantoras de ópera a competir com o fantasma dela. Talvez ele devesse sair do caminho e dar lugar a outros.
No livro Lições para o Século XXI, Yuval Noah Harari afirma queos algoritmos vão decidir por nós quem somos e o que devemos saber sobre nós. Será?
Quando os servidores ficarem sobreaquecidos, serão os algoritmos a decidir os dados que ficam e aqueles que não. As empresas de big data vão optar pelo que for mais eficiente e lucrativo. Não são arquivistas nem historiadores. Só se houver intervenção ao nível regulatório é que podem existir mudanças. O trabalho de selecionar o que é importante e fica e o que não é e fica de fora tanto acontece a um nível micro – na família, que herda, por exemplo, um laptop com milhares de ficheiros – como a um nível macro. Não pretendo ser cínica, mas o que costumo dizer na Digital Legacy Association é que a mudança só será efetiva quando quebrarmos o poder dos monopólios.
O que leva uma pessoa a querer perpetuar a existência física com recurso à criação de um eu virtual?
Desde que nascemos que nos vemos através dos olhos de um outro, mesmo antes das redes sociais. Queremos ser lembrados como boas pessoas e aterroriza-nos a ideia de não existirmos, de não termos influência e da insignificância. Não pensamos no impacto da vida digital após a morte, mas ela existe e levanta questões. Para tratarmos nós ou quem fica depois de nós.