Falta coração aos produtos e serviços criados em Silicon Valley, na costa oeste dos Estados Unidos da América. A observação é do inventor da #hashtag e feroz defensor do open source, ou software de código aberto, que lhe valeu um prémio da Google, nos seus primeiros anos de carreira. Chris Messina tem 38 anos, trabalha em inovação tecnológica há 15 e visitou Lisboa a fim de participar na segunda edição do Pixels Camp, com a palestra The Technology in Better Humans.
O também pioneiro do coworking quer estancar o empobrecimento crescente das relações humanas que resulta do registo predominantemente lógico das ferramentas digitais. O que fazer para incorporar na tecnologia a fidelidade em ligações entre humanos, entre humanos e máquinas e entre máquinas entre si? Como o futuro se constrói agora, a solução é dotar as novas geraçõesde programadores com competências de inteligência emocional, defende.
Quando criou a #hashtag, disse que acreditar em algo e mostrar que isso funciona era suficiente para ser aceite. Ainda pensa assim?
Cheguei a Silicon Valley em 2004, e o meu primeiro projeto foi contribuir para o lançamento do Firefox. Acreditava que a internet era um espaço aberto a quem queria programar e partilhar ideias sem ter de pedir licença. Mas ninguém estava preparado para lidar com o impacto dos média sociais e, menos ainda, com os níveis preocupantes de manipulação que se seguiram. A Inteligência Artificial (IA) e o processamento da imagem evoluíram tanto que já não distinguimos o que é real e o que não é. Há mais informação falsa e uma crescente desconfiança por parte das pessoas, e isso tem de mudar.
Concorda com Tim Berners-Lee [inventor da internet], que alerta para o mau uso da internet?
As tecnológicas criam produtos e funcionalidades a pensar no lucro. A liberdade requer esforço, e eu tive de lutar para preservá-la. A #hashtag, por exemplo, tinha a finalidade de ser usada por qualquer pessoa em qualquer rede. Ofendeu-me muito que o Twitter, após rejeitar a minha proposta por entender que não ia funcionar, decidisse, anos depois, monetizá-la quando se tornou popular, impedindo outros de usá-la. A ideia original era criar um comportamento social e não impedir o uso do símbolo noutras plataformas para manter as pessoas num dado ecossistema.
Saiu de Silicon Valley. Nunca se sentiu ameaçado por ter um pensamento divergente?
Não. Há uma cultura libertária que admite críticas às tecnológicas. Além disso, eu não queria tirar benefícios para mim, mas partilhá-los com a comunidade. Quero perceber como a tecnologia pode ser usada para melhorar a comunicação e acredito que, nestas empresas, há pessoas bem-sucedidas a querer fazer a coisa certa e motivadas para expandir o acesso à tecnologia. Porém, têm de conciliar esta meta com as dos investidores.
Chamam-lhe “evangelizador da tecnologia” e “campeão da conversa”. O que pretende alcançar?
Cresci na costa oeste dos Estados Unidos da América, onde existe uma cultura que aposta mais na iniciativa privada do que nas estatais. Para crescer e inovar, as empresas tiveram de cooperar na mesma área de serviços, tornando o software mais eficiente. O modelo de colaboração em rede permitiu resolver problemas em áreas não competitivas e divulgar soluções como num processo académico: quem tivesse o mesmo problema não precisava de passar por ele sozinho. Antes disso, empresas como a Microsoft desenvolviam em segredo produtos e serviços para todos. O open source passou a ser a via para inovar em tecnologia, à semelhança do que sucede no futebol: a regras eram a plataforma e as equipas seriam os diferentes tipos de software. Ou seja: a Liga é que conta e há várias equipas lá. É outra maneira de encarar a competição.
Por que razão os filhos dos executivos de Silicon Valley não acedem à tecnologia em idade escolar?
Pela componente viciante. Vender produtos e aplicações em grande escala implica torná-los atrativos e desejáveis para o utilizador lhes dedicar mais tempo e atenção. A Apple, como exemplo, produz joalharia ligada à internet. Os seus equipamentos são símbolos de estatuto equiparáveis a um Mercedes Benz ou a um BMW. O seu telefone diz muito sobre o seu estatuto.
A lógica de gamificação presente na tecnologia está a infantilizar-nos?
Cresci a ver televisão. Já lá estava quando cheguei. O mesmo se passa com os miúdos e os smartphones – o iPad e a Siri já lá estavam, com sistemas de recompensa variável (notificações de mensagens, partilhas, likes, etc.) para prender as pessoas, como nas casas de jogo em Las Vegas. Pais que trabalham em Silicon Valley são relutantes em permitir o livre acesso dos filhos às tecnologias, dado não terem desenvolvido ainda um sentimento para poderem optar por afastar-se. Mesmo que algumas crianças consigam fazê-lo, isso não é universal, sobretudo se os pais tiverem uma conduta permissiva. Comunicar com os outros, na maior parte do tempo, através de ecrãs de vidro, parece estar a criar mais desconexão, isolamento, ansiedade, stresse e solidão.
É preciso reivindicar a arte da conversa, como defende a psicóloga norte-americana Sherry Turkle?
Já não faz sentido olhar para a tecnologia como algo que nos é separado. Nós somos a tecnologia, porque nos desenvolvemos com ela. Mas se tivermos uma visão limitada sobre nós, aquilo que construirmos não será assim tão bom. Multiplicando o processo por milhares ou milhões de vezes, perde-se a fidelidade, a riqueza e a ambiguidade que definem a experiência humana.
O que fazer agora que não vamos voltar ao registo analógico?
Mais tecnologia pode ser parte da solução, mas precisamos de direcioná-la para o eu, para as novas gerações de programadores aprenderem mais sobre si mesmas e conhecerem bem as suas necessidades pessoais, do corpo e da mente. Os últimos 30 anos foram centrados na lógica,
no hemisfério esquerdo do cérebro.
A parte mais intuitiva e artística, ligada ao hemisfério direito, foi esquecida na cultura de Silicon Valley, que quer reduzir ao máximo a complexidade das coisas. Mudar é dar um salto de fé.
Porque chama “bots de Deus” às assistentes pessoais?
Um bot é uma interface, um software que simula ações repetidas e com o qual podemos falar. Numa perspetiva mitológica, idealizavam-se os deuses porque não se conhecia o funcionamento das coisas. Quando trabalhei na Google [entre 2010 e 2013], dizíamos “a minha experiência com a Google não é igual à tua”. Era realmente assim, pois o sistema aprende com as pesquisas e, em função delas, envia resultados de acordo com as nossas preferências. As assistentes de voz parecem omnipresentes por saberem muito sobre nós. Não sabemos o limite desse conhecimento.
O género é um tema para os programadores?
Não tenho resposta sobre isso: Alexa é feminino, Siri é ambíguo, Jarvis (do Facebook) é masculino. Neste contexto, o nome é mais importante do que o género. A ideia destas ferramentas é terem mais poderes e conhecerem a fundo o utilizador.
Um pouco como os anjos: o que conta é estarem na nuvem, o sexo nem tanto…
[Risos.] Quem sabe, até podem funcionar como uma caixa divina, porque os antropomorfizamos.
A garantia de privacidade é mesmo possível?
É difícil falar do tema sem especular. Pense nas empresas que ocupam feeds de notícias do Facebook e que conseguem inferir o que fazemos, onde vamos e de quem gostamos. Para elas, somos apenas um ID, um número numa base de dados. Os bots estimam as nossas necessidades e nós vamos passar boa parte do nosso tempo a falar com eles.
Pode ser muito frustrante falar com bots.
Eu também acho muito frustrante falar com pessoas! Os humanos são criaturas curiosas, frustram-se com bots porque não são responsivos como eles. Pôr pessoas em call centers a seguir um fluxograma é tão frustrante como estar com um bot, não se tem autonomia. Quero reunir quem tem sensibilidade para melhorar a tecnologia. Estou convencido de que, se estas pessoas se conhecerem melhor e se tornarem mais empáticas e conscientes, podem aplicar isso no design dos produtos que criam.
Seria o fim dos discursos de ódio?
Os média sociais agregaram pessoas separadas por questões de pertença. À medida que crescem os valores liberais, é mais difícil integrar diferenças e corrigir injustiças estruturais, que envolvem raiva, frustração, dor e feridas por sarar. É difícil ter conversas, que antes nunca existiram, com pessoas vulneráveis que se expõem sem manter a calma. Quem cria software deve usar competências emocionais de forma consciente.
A exposição do romance online com a sua sócia na consultora Citizen Agency causou-lhe danos?
Foi em 2006, as redes sociais não tinham a presença que têm hoje. Fi-lo como ativista do open source, para saber até onde podia expandir essa ideia. Aprendi que partilhar a minha história no espaço virtual é arriscado.
Define-se como alguém emocionalmente aberto?
Na cultura tecnológica predominam pessoas com um funcionamento cerebral neurologicamente atípico, que construíram uma cultura semelhante ao seu modo de pensar e que fizeram impérios. Eu também penso de forma racional e abstrata, mas cresci com uma vertente artística. Durante anos, renunciei ao lado direito do cérebro por achar que tinha de ser frio e lógico. Quando saí da Google, percebi que tinha abandonado metade de mim, a intuição e a emoção. Falta isso em Silicon Valley: estamos a perder aspetos da Humanidade que a tornam robusta e resiliente.
Pode dar um exemplo?
Se gosto de alguma coisa que outros publicam, clico “like” e pouco mais, porque a plataforma foi desenhada num registo hipersimplificado. Como criar espaço para migrar do virtual para uma conversa que leve em conta o estado anímico do outro ou o contacto visual? Concebemos tecnologia social básica, em que estes pormenores não contam na ótica da eficiência. Nos próximos anos, teremos de criar uma cultura com valores que preservem a experiência humana. Se não nos tornarmos mais conversadores ou se tivermos medo de interagir de forma interessante com os sistemas de IA, isso pode ser um problema sério.
Devemos temer a Singularidade [hipótese do crescimento tecnológico desenfreado e impacto irreversível para os humanos]?
[Pausa.] Muito do meu cérebro está neste dispositivo [aponta para o telemóvel]. Uma vez fiquei sem computador e telemóvel. “Morri digitalmente, e agora?”, pensei. Não havia nada a fazer, porque tinha a autenticação de dois fatores. Esta é a ideia dos libertários: só uma pessoa tem a chave; se a deitar fora, acabou. Tive de começar do zero; é uma forma de pensar na Singularidade. A outra é admitir que seremos animais de estimação da IA, mas eu inclino-me a pensar que teremos uma largura de banda e capacidades de comunicação mais evoluídas. Num futuro próximo, passaremos dados entre cérebros, não por trocas fonéticas mas, talvez, por via de implantes ou de outra forma mais direta.
Não deixa de ser um pouco distópico.
É natural ficar nostálgico, mas, em contrapartida, essa ideia permite percecionar o mundo por outras lentes. É por isso que viajamos.
Tem tempo para passatempos analógicos?
Faço ioga e meditação, e viajo.
Conhece pessoalmente o seu homónimo [ator famoso e protagonista de Vicky Cristina Barcelona]?
[Solta uma gargalhada.] Estive quase para o conhecer, no Festival de Cinema de Tribeca. Mas não. Há de chegar o dia!