Começámos esta entrevista ainda não era hora de almoço, na mesa mais iluminada do restaurante Alma, no Chiado, em Lisboa, que, desde 2018, ostenta duas Estrelas Michelin. Ao nosso lado vão-se sentando vários estrangeiros, dispostos a provar as obras de arte de Henrique Sá Pessoa, 42 anos, e a delirar com o seu bacalhau à Brás (o verbo não é abusivo para esta reinvenção da receita portuguesa, atestamos). Acabámos quase à hora do lanche, depois de uma longa conversa e de um delicioso remate, entre pratos.
O que mudou na sua vida desde que ganhou a segunda Estrela Michelin?
Sinto que houve uma enorme evolução na minha cozinha, depois do reconhecimento.
Depois ou antes?
Tive a inteligência de parar um bocadinho para pensar. A minha ascensão foi muito rápida, após o regresso a Portugal, em 2002. Três anos depois, era considerado o Chefe do Ano e tinha um programa na televisão. Em conjunto com o [José] Avillez, fui o primeiro da nova geração a tornar-se mediático. Hoje, nem sei quantos fazem coisas na TV…
Abro um parêntesis para lhe perguntar se, neste momento, está a preparar algum programa?
Não estou no ar, mas ando a trabalhar num formato que ainda está em segredo. Estrear-se-á durante este ano, num canal via cabo.
Fechemos o parêntesis…
Quando abri o Alma, já não havia a pressão de mostrar quem eu era, mas senti que tinha de provar o que valia. Nunca se deve abrir um restaurante com o objetivo de ganhar uma Estrela, porque se perde a essência do que uma pessoa é. Aqui, desafiei um pouco as normas ao construir as coisas com informalidade, sem sequer pôr uma toalha na mesa.
Porque escolheu esse desafio?
Queria um ambiente com o qual me identificasse enquanto cozinheiro e que eu gostasse de proporcionar aos meus clientes, sem me preocupar se isso se coadunava ou não com Estrelas Michelin. Lá fora já havia muita coisa do género e, então, pensei que a transformação havia de chegar cá. E chegou, de facto, logo no ano em que eu abri.
Aqui o inspetor da Michelin não tem de verificar se as toalhas estão bem vincadas…
Eles procuram, sobretudo, consistência – o que é muito difícil de se conseguir. O Alma é um projeto com 10 anos – embora o anterior tivesse características diferentes – e eu sempre procurei uma espinha dorsal no que toca ao pessoal.
Como consegue ter alguns colaboradores consigo há 15 anos?
Acima de tudo, há que dar-lhes espaço. Existe aquela ideia de que o chefe tem de estar sempre na cozinha, mas eu discordo. Se não conseguirmos delegar nem deixar que as pessoas que estão ao nosso lado tenham cada vez mais protagonismo, elas vão embora. Eu e o Daniel [Costa, o subchefe] conseguimos criar esse equilíbrio entre a entrada e a saída de cena de cada um. Ele nunca quis – nem nunca vai querer – ter aquele spotlight de que alguns chefes sentem necessidade.
É o seu caso?
Tenho spotlight, mas sempre o considerei uma coisa natural. Sou ambicioso, mas procuro manter-me igual a mim próprio.
Foi por causa desse spotlight que começou a fazer televisão?
Nessa altura [2002], nem tinha a noção do que o protagonismo podia representar. Propus o programa [Entre Pratos], porque gostava de ver os programas que o Jamie Oliver fazia e achava que, em Portugal, estes estavam todos desatualizados. Além disso, olhava para os carrinhos de supermercado e via que as pessoas compravam sempre as mesmas coisas e cozinhavam sempre da mesma forma.
Isto veio a propósito de saber o que mudou com as Estrelas. Já percebemos que não foi o Henrique…
Eu não, mas a minha carreira mudou e cresceu muito. Tenho sempre presente que há um negócio para gerir – muitas vezes é difícil equilibrar o ego de um chefe com aquilo que funciona comercialmente. Aconselho os mais jovens a não se centrarem apenas na técnica, porque isso é apreciado por uma percentagem mínima de clientes.
A maioria das pessoas quer apenas comer?
Comer e passar um bom bocado. Ainda na semana passada, conheci o meu ídolo – o chefe britânico Marco Pierre White, que foi o mais jovem a receber três Estrelas – e ele disse-me: “Um restaurante faz-se de 33% de ambiente, de 33% de comida e de 33% de serviço.” No entanto, há muitos chefes que se acham a última coca-cola do deserto e que tudo o que fazem é divinal.
Já abriu o primeiro restaurante fora do País. Sempre quis internacionalizar-se ou isso surgiu por acaso?
Sempre quis expandir-me para o estrangeiro, e esta proposta veio ao encontro do que eu queria.
Macau foi um acaso?
Não faria sentido ir para a Europa. Além disso, tenho um fascínio pelo Oriente e, ainda por cima, em Macau, sente-se aquela influência portuguesa. É o melhor ponto de partida.
Em que consiste esse restaurante, chamado Chiado?
Trata-se de um sítio de cozinha portuguesa contemporânea – não é fine dinning mas também não podemos chamar-lhe tasca. Da lista constam aqueles pratos que considero mais clássicos, que tenho vindo a fazer há muitos anos e que representam a nossa cozinha, aos quais adicionei alguns toques pessoais: leitão, cataplana, arroz de marisco, amêijoas à Bulhão Pato ou bacalhau à Brás.
Também saiu para fora de Lisboa, com o Tapisco. Como tem corrido a expansão para o Porto?
Adoro aquela cidade. Tenho uma base de fãs bem presente lá e, por isso, achei que fazia sentido proporcionar-lhes um conceito descomplicado. Abrimos no verão passado e ainda estamos a acertar agulhas, pois notámos mais a sazonalidade do que em Lisboa. Neste momento, sinto que o mercado brasileiro está em expansão na capital – falo de pessoas que não têm qualquer complexo em gastar 200 ou 300 euros numa garrafa de vinho.
Como é o seu dia típico?
Há duas coisas muito importantes: termos tempo para nós próprios e não deixarmos que a nossa profissão tome conta de nós, por mais paixão que sintamos. Tento ir ao ginásio, três a quatro vezes por semana – pela saúde e porque é um escape. Como sou pai divorciado, nas semanas em que estou com a minha filha, trabalho mais de manhã, para à noite estar disponível para ela. Além de assegurar seis a sete serviços no Alma, tenho a estratégia de “apaga-fogos”, consoante as necessidades dos meus restaurantes. E ainda me esforço por passar dois dias no Atelier.
Hoje, há a tendência de os chefes terem esses laboratórios de criação. Qual a importância do seu Atelier?
É uma cozinha, com fogão e forno, mas também é um espaço muito importante, porque me permite pensar – em formação, em procedimentos, em loiças, em livros…
Mas o que faz: senta-se a pensar ou pega num bloco e escreve?
Tenho lá o chefe Pedro Larcher, em permanência. Às vezes estamos sentados, sim, rodeados de livros, a ver se nos inspiramos.
Como se chega a uma receita dos pratos que serve aqui no Alma?
Noutro dia, por exemplo, decidimos que queríamos fazer um soufflé. Pegámos em livros e começámos a ler sobre as técnicas. Depois, pensámos que tipo de soufflé queríamos – sem farinha, diferente e com sabores portugueses. Chegámos à ideia de um de arroz-doce, com gelado de fruta e moscatel. Finalmente, fizemos um primeiro teste, provámos, tirámos fotografias e fomos catalogando.
Quanto tempo passou desde o dia em que decidiram fazer um soufflé até darem a obra por terminada?
Dois, três dias, mas é um processo que pode demorar mais. E também é possível não chegarmos a lado algum. Outras vezes, pego numa receita antiga, que achava perfeita, e tento melhorá-la. Por estes dias, andámos a brincar com um gaspacho…
Quando põem as receitas à prova?
No Atelier, temos dois jantares mensais, e essas pessoas são as nossas cobaias, e a pagar [risos]. É como se fosse um convite para ir a minha casa, proporcionando, assim, a proximidade no processo criativo.
Não tem aquele percurso-cliché de ter ganho o gosto pela cozinha, porque via a sua avó ou a sua mãe entre os tachos. E até despertou numa fase considerada tardia. Conte-nos o que se passou.
Era muito esquisitinho e difícil para comer. A minha mãe sempre disse que, de todas as profissões possíveis e imaginárias, cozinheiro seria a última que pensava que eu escolheria. Mas, na verdade, essa esquisitice era sinónimo de exigência, pois, quando a comida era boa, passava a ter apetite. As minhas primeiras experiências culinárias aconteceram quando fui viver com o meu pai, aos 14-15 anos, e tive de me desenrascar.
Mas nem lhe passava pela cabeça que iria fazer da cozinha a sua vida?
Nunca. Eu queria ser basquetebolista, tinha o quarto forrado com pósteres da NBA. Só que, quando estive nos EUA, no final do Secundário, assisti a uma palestra de um chefe e fiquei fascinado. Depois, ingressei na The Pennsylvania Culinary Institute, em Pittsburgh, e foi amor à primeira vista. Sempre fui um aluno médio-medíocre, mas, nesse curso, fui o segundo melhor em mais de trezentos alunos. Antes de ir para lá estudar, ainda tive o meu primeiro emprego no setor, como copeiro no hotel Cidadela, em Cascais, em 1995.
Depois do curso, mudou-se para Londres. Como correu?
Foi duro. Fui humilhado pelo meu chefe e praxado pelos meus colegas. Mas isso tornou-se importante para perceber que me aguentava perante a adversidade.
O Henrique grita na cozinha?
Não, sou muito mais de responsabilizar as pessoas do que de humilhá-las. Não vale de nada chamar-lhes nomes – isso só vai fazer com que me desrespeitem.
Viveu nos EUA, na Austrália, em Espanha e na Inglaterra. Porque decidiu voltar?
Não decidi. Vim cá para matar saudades, depois de andar fora durante quase oito anos. E a minha mulher, que era australiana, também quis conhecer o País. A ideia era ficar por um, dois anos, mas as coisas começaram a acontecer muito depressa e tive de aproveitar a onda. Entretanto, nasceu a minha filha, separei-me e já não voltei para a Austrália.
Como foi a experiência de fazer o programa Chefe de Família, com a sua filha de 12 anos?
Ótima, porque aquilo que os telespectadores viam era mais ou menos o que se passa no nosso dia a dia. E escusa de me perguntar se a Inês quer ser cozinheira, porque ela nem gosta de cozinhar. No entanto, fá-lo melhor do que muitos da idade dela. Está habituada a ver-me em ação.
Em casa, também cozinha a sério?
A sério, mas numa linha simples. Faço panados de frango com arroz de cenoura e coentros.
Mas saem-lhe muito melhor do que a nós, certamente.
Saem é mais depressa. Não quer dizer que coma coisas elaboradas todos os dias.
As mulheres ainda estão muito mal representadas nesta profissão. Quantas há nesta cozinha?
Aqui temos três a quatro – em 12 –, contratadas pelas suas qualidades e não pelo género. No entanto, faço por ter mulheres na cozinha, por uma questão de equilíbrio, de organização e de limpeza. Não é que sejam elas a fazê-lo, mas exigem isso aos homens. E o nível das conversas também se eleva.
Há solidariedade entre os chefes?
Rivalidades existem sempre, mas são saudáveis. Sou amigo de todos os outros chefes e desvalorizo o cinismo e o que se diz pelas costas. O trabalho que estamos a fazer em Portugal é fantástico.
Que restaurante recomendaria a um estrangeiro que lhe pedisse um conselho acerca de um bom sítio para provar a gastronomia nacional?
Recomendo sempre o Ramiro, apesar de ser um cliché. Adoro aquele rebuliço e o facto de ficar satisfeito em meia hora, com umas amêijoas e umas cervejas. Além disso, como sou dos chefes que vai mais aos restaurantes dos meus colegas, quando arranjo mesa, também os recomendo.
Qual é o seu ingrediente secreto?
A erva-príncipe. Uso-o há muitos anos, de forma subtil. No aspeto pessoal, é a humildade e o não me deixar deslumbrar com tudo isto.
E o seu prato favorito?
Adoro um peixinho grelhado, à nossa maneira. Mas gosto cada vez mais da cozinha tradicional, como uns filetes de pescada com arroz de tomate.