Está a preparar um livro sobre os últimos 25 anos na Saúde em Portugal. Hoje catedrático jubilado de Política de Saúde, em 1993, este médico regressava a Portugal vindo da Dinamarca, onde tinha sido diretor da Organização Mundial de Saúde (OMS) de Políticas para a Saúde na Europa. E iniciava um caminho por alguns dos mais destacados lugares do setor, como diretor-geral da Saúde ou diretor da Escola Nacional de Saúde Pública. No final de abril, Constantino Sakellarides demitiu-se de consultor do ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, que o encarregara da modernização do sistema.
Acabamos de assistir a três dias de greve de médicos. Compreensível?
Em muitos países os médicos estão preocupados e insatisfeitos com a forma como os sistemas de saúde evoluem, já que estão mais complexos, mais restritivos. Em Portugal há razões específicas acrescidas, devido ao empobrecimento do País e do Serviço Nacional de Saúde (SNS), à degradação das condições de trabalho que se tem verificado. Mas manifestações longas também contribuem para fragilizar ainda mais o sistema e prejudicar os doentes. Há que ponderar todos estes aspetos.
Um dos argumentos foi o de o Governo gastar 120 milhões de euros ao ano com empresas de trabalho temporário, em vez de abrir a tempo concursos de especialidade.
Sim, os concursos têm sido sistematicamente atrasados. Mas a questão de fundo é que o SNS não sobreviverá se não tiver um corpo profissional dedicado a tempo inteiro. Não têm de ser todos. Convém até que haja uma margem flexível, um corpo de 50% ou 60% de pessoas só da casa. Nenhuma empresa inteligente partilha os seus recursos fundamentais, o capital humano.
Está a falar só de médicos?
Não, de profissionais em geral. Haver um corpo exclusivo não é por castigo, mas para criar condições que permitam atrair e segurar as pessoas, oferecendo trabalho interessante, possibilidade de intervir na gestão, condições mínimas de equipamento e instalações, enfim, uma atividade que dê satisfação pessoal. Os estudos internacionais mostram que as condições remuneratórias são importantes, mas o fundamental é fazer-se aquilo de que se gosta num ambiente de que se gosta. Não podemos esperar mais por isso.
Já há profissionais em exclusivo, que ganham mais.
Mas são em número altamente insuficiente. E a exclusividade não é tudo. Tem de ser acompanhada de retribuição do desempenho, oportunidades de carreira e de investigação. Sem isto, o SNS não vai sobreviver. Não tenho qualquer dúvida.
Os privados oferecem salários mais altos, hospitais bem equipados. Parece difícil de recusar.
Não é. A Saúde passou a ser um mercado competitivo, mas é dramático o SNS assistir passivamente à saída dos seus melhores ativos. Se fosse só dinheiro, então é que não poderia competir. Mas os estudos mostram, como disse, que isso não é o fundamental, embora a diferença salarial também não deva ser entre oito e 80. O SNS pode oferecer condições que os outros não têm, com a perspetiva de ascensão numa carreira pública. E dá uma coisa extremamente importante, que é o sentido de trabalhar num bem comum. É como trabalhar em casa. Só que não chega repor o que o SNS tem vindo a perder. Precisa de ter meios e capacidade estratégica para poder transformar-se.
Quando recentemente se demitiu de consultor do ministro da Saúde, negou que tivesse havido uma zanga. Então foi desistência?
Não. As zangas são reações emocionais que as questões desta natureza não merecem. As decisões sobre saúde devem ser altamente racionais e pensadas. E têm que ver com colaboração e compromissos mútuos. Às vezes, a colaboração leva a que o caminho se alargue e, outras, a que se estreite. Quando o caminho se estreita ao ponto de não se poder passar, é melhor estar fora do que dentro. Conheci todos os ministros da Saúde nos últimos 25 anos. Conversei com todos, trabalhei com alguns e aprendi certas coisas.
Como por exemplo…?
Algumas vezes, é bom estar com eles e ajudá-los a resolver as coisas. Noutras, é melhor ficar fora e ajudá-los a compreender o que vai acontecendo. A saída pode ser benéfica, quando se explica porquê. Essa explicação permite, pelo menos, novo impulso para resolver situações. Não vou partilhar intimidades nem informação privilegiada a que tive acesso. Mas posso dizer, em termos de conceção do sistema, o que me preocupa.
E o que é?
O País empobreceu e o SNS, só entre 2011 e 2015, perdeu mil milhões de euros, e já via os seus recursos a diminuir desde 2009. Agora, o ministro das Finanças (Mário Centeno) diz que já repôs 700 mil euros. Mas a perda não pode ser avaliada em função do orçamento corrente. Ao longo desse tempo, a degradação de equipamentos e instalações foi-se acumulando. E o SNS perdeu muitas pessoas qualificadas. Tinham ficado sem 15% do salário, eram procuradas no mercado e a gestão tornara-se extremamente centralizadora. Não se recupera de toda esta situação em dois anos nem em três. E depois há a questão dos cortes, que são cegos, sem nenhuma seletividade, e que foram centralizados no Ministério das Finanças e no da Saúde.
Com que resultados?
Os diretores dos hospitais e centros de Saúde não decidem nada. Isso não só leva a decisões pouco inteligentes mas também anula toda a capacidade de gestão dos profissionais. Seguem-se apenas instruções. Agora há uma grande pressão para repor recursos, mas não vale a pena fazê-lo num sistema altamente disfuncional, onde irão perder toda a eficiência. Não podemos repor sem transformar, e a modernização do SNS é uma peça fundamental desse processo. Temos de começar a fazê-la a nível experimental, criando instrumentos de gestão e aumentando a cultura de colaboração, que não temos muito. E, depois, é preciso o discurso político, para explicar às pessoas que essa transformação é indispensável.
E vai traduzir-se em quê?
Não foi só em Portugal que o sistema foi criado com uma estrutura vertical, como em silos, com cuidados de saúde primários, hospitais e cuidados continuados. Tudo separado. Assenta na lógica de que, quando tenho um problema, tento resolvê-lo numa urgência, fico bem e logo se vê até à próxima. A conceção de um SNS que responde a situações agudas foi ultrapassada pelo tempo. Hoje grande parte das pessoas tem vários problemas de saúde. E não me refiro apenas à asma, às doenças cardíacas ou à diabetes, mas também às dores no pescoço ou nas costas, ao dormir mal, à má sexualidade, às tonturas. Na Escócia, que tem o estudo mais profundo sobre estes casos, as pessoas com problemas múltiplos de saúde são um quarto da população. Em Portugal serão, pelo menos, um terço. Precisamos de instrumentos que permitam gerir o percurso dessas pessoas, garantir que vão aos sítios onde terão os cuidados apropriados.
É por isso que chama disfuncional ao sistema?
Uma grande parte da população não encontra resposta adequada no SNS. Por isso, apesar de a nossa esperança de vida ter aumentado, mesmo em termos europeus, envelhecemos com má qualidade. Uma sueca aos 65 anos tem uma esperança de vida com saúde de 16 anos, enquanto uma portuguesa tem apenas seis. A única estrutura que pode reverter este caminho é o SNS. Temos é de começar hoje, e não ir deixando para depois de amanhã. Toda a Europa está a fazer isto e nós podemos até ficar na vanguarda, porque somos um país pequeno, com um SNS bem distribuído. Não aceito que sejamos incapazes de fazer isto bem.
O ministro da Saúde disse no Parlamento que “no Governo somos todos Centeno”. Já agora, também é Centeno?
Não. A política tem o seu teatro, a que não atribuo grande relevo. Assim parece uma caricatura da política, como se fosse um despique entre Adalberto e Centeno. É puro folclore. O importante foi o Governo ter dito que o défice para 2018 seria de 1,1% e agora ir revê-lo para 0,7%. As pessoas questionam, e com razão, para quê rever o défice e não usar essa margem para investir na Saúde. Sou uma pessoa da Saúde, alinho nessa tropa. Se fizermos alguma pressão, talvez consigamos um pouco mais, mas não se resolve a questão fundamental.
Então?
Existe o Orçamento anual, que é sempre uma expectativa, e antes disso há o que se chama a estratégia orçamental. Ao contrário do que se julga, o Orçamento muda todos os meses, fica condicionado à estratégia orçamental. Vejamos alguns exemplos atuais. Há imprevistos como incêndios e seca, e o Orçamento muda. Quando Donald Trump diz qualquer coisa que cria insegurança, os mercados movem-se e isso reflete–se no Orçamento. E o mesmo sucede se o preço da energia sobe ou se um ataque terrorista faz aumentar o investimento em cibersegurança. Agora as previsões indicam que a economia europeia vai arrefecer em 2020 ou 2021, e há que criar margem para isso. Então, o ministro das Finanças conhece este dado e não há nada na estratégia orçamental, nada para o bem-estar das pessoas? O tempo de espera para consulta, por exemplo, é um indicador de bem-estar. Se este objetivo não estiver lá, não será contemplado, ao contrário da cibersegurança ou do arrefecimento económico.
Não há nada sobre Saúde na estratégia orçamental?
Exatamente. Agora na revisão do défice podemos chorar muito, para conseguir pouco. E, no entanto, uma pessoa com uma depressão séria vê um médico mais de um ano depois do início dos sintomas. Outro caso é o das infeções hospitalares. Um doente com 40 anos pode entrar para uma pequena cirurgia e contrair uma infeção fatal. São questões de bem-estar. Se não estiverem incluídos na estratégia orçamental, serão sempre preteridos em favor de outros. A nossa intervenção na Saúde tem de ser ao nível da estratégia orçamental.
O ministro da Saúde já disse que a reposição dos recursos do SNS ao nível anterior à crise é coisa para duas legislaturas.
A questão não é essa. Devido aos cortes todos que houve, concordo que a reposição irá durar mais de uma legislatura. Mas não se deve fazê-la sem transformação. Ou então iremos repor o mesmo sistema disfuncional. Não queremos mais médicos ou mais enfermeiros para o sistema tal como ele era em 2010. Precisamos é de uma estratégia orçamental a pensar no sistema que devemos ter em 2020 ou 2025.
O presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar disse que o ministro da Saúde deve sair, porque está “esgotado”. Concorda?
A nossa capacidade de análise e de criar através dela opinião pública obriga à seriedade das nossas posições. Não podemos ser ligeiros. Quem tem capacidade para avaliar se um ministro está ou não gasto é o primeiro-ministro. O julgamento político deve ser feito por políticos, que eu não sou. E o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar também não.
O que achou quando ouviu o ministro das Finanças dizer que provavelmente há “má gestão” na Saúde?
São afirmações ligeiras. Falar em má gestão é uma banalidade. O principal problema da gestão é não haver gestão nenhuma. Está toda centralizada no ministério das Finanças e no da Saúde. Um hospital ou um centro de Saúde não gere nada. Recentemente perguntaram-me se a Oncologia Pediátrica do Hospital de São João não devia ser uma prioridade. Claro que sim, mas não se pode resolver o problema localmente. Quando se corta cegamente, por imperativo da Troika ou outro, há que centralizar. Mas agora, no momento em que estamos a repor, não pode ser assim. Num serviço tão complexo e sensível como o SNS, a gestão tem de ser feita perto das pessoas e isso desapareceu. A menos que fosse à excessiva centralização que o ministro da Finanças se referia quando falou em má gestão. Se não era isso, foi apenas ruído.