Magueijo, um cientista de 50 anos que trabalha no Imperial College, em Londres, é tudo menos um emigrante normal, claro está, mas sente-se um emigrante igualzinho aos outros. Os seus dias mais felizes foram em Toronto, na acolhedora comunidade lusa, onde viveu dois anos. Escreveu um romance sobre essa experiência que se chama Olifaque, a versão em emigrês de “holy fuck”. Todo o livro, que é também um sério trabalho de recolha e estudo de uma forma de falar, é escrito nesta língua franca deliciosa que mistura português, inglês e uma pitada de francês, tudo temperado com muito vernáculo. Esta conversa é aliás uma versão pouco editada, onde o “tu” se impõe e onde não se filtram as asneiras. É a única forma de comunicar que Magueijo admite.
Havéramos era de fazer esta cumbersa em emigrês, mas depois sobrevinha uma grande escandaleira nos doutores.
Se quiseres bamos embora, carago! [risos] Não, vamos lá falar a sério!
Sim, não conseguiríamos. O emigrês tem muito que se lhe diga. Tínhamos de colocar um léxico final, como fazes no livro.
Tem tudo a ver com o facto de as pessoas aprenderem as palavras faladas e não escritas, e depois decalcarem o código em português, e as vogais são completamente diferentes. Quando cheguei a Inglaterra os emigrantes diziam naifa, porque faca soa a cabrão [fucker] e tinham medo de estar a chamar nomes a alguém.
Mesmo antes de ver a luz do dia, este livro já era polémico. Tiveste de mudar de editora para o publicar tal e qual o tinhas escrito. O que é que incomodava afinal? O emigrês, o vernáculo profuso ou alguns temas que abordas?
Acho que foi tudo. Em parte foram os temas, que são difíceis. A maior parte das pessoas emigram para fugir de traumas na terra pátria. Este período fatal de incêndios, por exemplo, vai gerar grandes traumas. Este país é muito bom a gerar traumas e a pôr as pessoas lá para fora. Eu emigrei porque não existiam mestrados em cosmologia em Portugal, olha que grande problema, isso não é um trauma. Mas maior parte das pessoas chegam com historietas do arco da velha, as razões económicas ainda são o menos. Depois chocou a linguagem, e o facto de chamar paneleiro ao Ronaldo. Pediram-me para mudar e eu não mudei. Mas que estupidez! As pessoas falam assim. Vamos ter vergonha disso?
Somos um país de conservadores e de pudicos?
Sim, acho que isso é verdade. Ainda há esta tendência de ignorar a maneira como as pessoas realmente falam. Se vamos escrever uma coisa realista sobre como as pessoas falam, não posso dizer “o Ronaldo é mariquinhas”, tenho de dizer “o Ronaldo é paneleiro”. [risos] Este livro é um romance, mas tentei fazer um apanhado sério da linguagem que se usa, não só o emigrês mas também do vernáculo, porque esta segunda vaga de emigração veio do norte e toda a gente sabe que no Norte “caralho” é uma vírgula, não tem nada de agressivo nem malcriado. O emigrês é uma língua franca, serve para as pessoas comunicarem da maneira mais simples e fácil. O emigrês de Toronto é das coisas mais ricas porque mistura português, inglês, francês e um pouco de italiano. E isto são coisas altamente frágeis, podem desaparecer numa geração. Há um livro publicado sobre isto, que é o do Mayone Dias (Falares Emigreses), e mais nada.
Escreveste o livro como uma homenagem aos emigrantes, mas como será recebido por essas comunidades? Muitos não vão gostar de se rever nesta imagem que passas de analfabetismo, adultério, prostituição, pedofilia, atrasos mentais, suicídios…
Sempre que vou a Toronto passo os primeiros dias a contarem-me histórias ainda mais duras do que aquelas que vêm no livro. Não sei o que as pessoas vão pensar, mas acho que muitas se vão rever.
Preocupa-te mais o que estas pessoas simples vão pensar do que o que dirão os críticos, intelectuais e os cientistas?
Sim, este livro é um manguito à intelectualidade portuguesa. Acho que este país precisava disto: há cinco milhões de portugueses desprezados e ignorados há anos e anos.
Isso é muito à Luiz Pacheco – afrontar o status quo, causando choque.
Não tenho paciência. Quando oiço esta gente discutir durante horas sobre se algo é literatura ou não é literatura, dá mesmo vontade de citar o mestre Pacheco: “Puta Que os Pariu”.
Mas estás mesmo nas tintas para o impacto que o que dizes e escreves vai causar, ou é marketing, uma forma de te notabilizares por seres diferente?
Sou um cientista, e sou um cientista radicado no estrangeiro. Por isso estou-me nas tintas para o que pensa a elite cultural portuguesa, que andou a desprezar os emigrantes, se eles acham que isto é ou não é literatura. Isto não é marketing, a minha atitude é mesmo assim. Posso dar-me a este luxo porque isto não é o meu trabalho, faço isto porque me apetece. O meu dia a dia é o Universo as estrelas, o Big Bang…
Há, de facto, uma sobranceria e um preconceito em relação aos emigrantes e à diáspora. Tiveste um episódio sintomático com um embaixador.
Sim, um certo embaixador que estava numa festa a torcer o nariz, com ar de nojo, por causa dos emigrantes que para ele eram gente do mais baixo que pode haver. Só que o emprego dele é representar aquelas pessoas – se não gosta arranje outro emprego. Chamei-lhe “escumalha”, foi uma coisa um bocado desagradável, mas quero lá saber desta gente. É ridícula esta coisa geral portuguesa de as pessoas se descolarem do que consideram ser a ralé, e porem-se num pedestral que afinal é só um microcosmos.
Pode haver sabedoria e profundidade nas pessoas mais simples. No livro estes emigrantes falam do Cosmos com metáforas sobre cuspir para o ar ou da teoria da relatividade com dimensões de pénis…
Sim, muitas destas pessoas são muito inteligentes, apesar de várias nem terem ido à escola. Alguns têm uma clareza de espírito inacreditável, aquilo é ciência, é matemática. As nossas elites culturais não percebem que estas pessoas, sendo quase analfabetos, têm um pensamento matemático e filosófico. É uma filosofia muito prática, claro, mas muito do epicurismo deriva daí: se não vamos viver para sempre, vamos aproveitar a vida. E a relatividade é também um conceito sociológico, moral e até pornográfico.
Como foram esses dois anos emToronto?
Foi uma coisa inesperada, gostei muito, gostei muito daquela comunidade. Foi na verdade a primeira vez que me senti em casa. É um bocado triste, porque nunca me senti em casa em Portugal… O Canadá trata muito bem a emigração – se as pessoas trabalham muito, recebem muito dinheiro e são respeitadas. A diversidade é a força de Toronto, está ali o mundo inteiro, sem preconceitos e com tolerância. Eles dizem que no Canadá ninguém os obriga a esquecer o que foram, nos Estados Unidos têm de se aculturar. Os portugueses absorveram o melhor do Canadá, este optimismo inocente extraordinário. Em Inglaterra há uma depressão e um cinismo enormes. E isso custou-me. É claro que cientificamente as minhas raízes estão em Inglaterra. Os ingleses na academia têm aquela tolerância com novas ideias, uma capacidade excêntrica de aceitar coisas novas, e sempre floresci dentro daquilo. Outra coisa é viver lá…
Esse ambiente de liberdade para a criação na comunidade científica é extraordinário. Não acontece isso em Portugal?
Em Portugal não acontece nada. O problema é que não há tempo para fazer ciência, as pessoas estão sobrecarregadas com cargas horárias descomunais no ensino e não têm condições para fazer investigação. Há ideia que a investigação se faz nas horas vagas, e tem de ser um trabalho a tempo inteiro. E depois o ambiente é essencial, é preciso haver cabeças semelhantes, sobretudo para a investigação teórica como a minha: costumo dizer que as minhas experiências são os meus colegas. Em Inglaterra há uma tradição secular, desde o Newton, de que ideias malucas levam a grandes prémios. E há essa tolerância em relação a pessoas com ideias doidas não ser reprimidas nem suprimidas, são encorajadas a fazê-lo.
Mas quando saíste com a ideia da Velocidade Variável da Luz foste criticado mesmo em Inglaterra. Houve pessoas que se chocaram com a ideia de contestar uma parte da teoria de Einstein.
Sim, mas as críticas são construtivas, e não destrutivas. Essas são mais nos Estados Unidos, é uma coisa muito mais estabelecida em bandwagons [carneirada], andam todos a pensar a mesma coisa.
Como são as cabeças desses cientistas? É preciso ser um bocadinho louco para fazer ciência a esse nível?
Sim, os meus colegas são todos bastante loucos, cada um à sua maneira. É raríssimo, por exemplo, as pessoas serem casadas e terem filhos. E a comunidade inglesa é altamente dominada por homens – há mulheres, mas muito poucas. É o lado mau da tradição.
Não alinhas com a tese de que tem a ver com as cabeças: homens mais dados à abstração e mulheres às coisas mais práticas?
Não, acho que tem a ver com a educação e com a tradição, com o que se diz às pessoas para fazer. Em Portugal, por exemplo, não existia esse preconceito, havia imensas mulheres.
E o ambiente é muito competitivo?
Sim, muito, há batatada que nunca mais acaba. As pessoas põem o ego à frente e tudo. E isso sim pode afugentar as mulheres, não que elas não sejam capazes de competir mas porque não têm paciência para isso.
Usas imenso vernáculo. Falas assim normalmente no meio científico?
Digo muitos palavrões, aquilo acorda as pessoas. Em Inglaterra isso passa muito bem. Eu detesto o politicamente correcto, aquela capa de tinta fina que não esconde o que está por baixo. Em Portugal tive problemas enormes – “Ai, o Senhor Doutor não pode dizer caralho!” Acho muito divertido, porque em Portugal o Senhor Professor dizer um palavrão é um escândalo, mas o Senhor Professor não publicar artigos há 10 anos não é problema nenhum. Em Inglaterra é o contrário.
Como surgem as ideias para os cientistas?
Estive agora na Brown agora para fazer ciência com o Stephon Alexander, que escreveu um livro fabuloso que se chama The Jazz of Physics. E ele fala muito sobre a interação que há entre o improvisar na música jazz e fazer ciência. Um dia fomos a Nova Iorque e viemos a viagem toda a dormitar no comboio e a dizer disparates científicos com uma garrafa de cerveja na mão. Quando chegámos ao fim tínhamos um artigo científico, foi só passá-lo para o papel. Estar fechado num laboratório sentado numa mesa é a pior coisa que pode haver na fase criativa, isso só serve depois.
Como explicas aos teus amigos o que fazes? O que é isso da cosmologia?
É um bocado difícil, e normalmente cria confusões porque as pessoas não têm bem a noção do tamanho disto [do universo]. As pessoas tendem pensar nas estrelas e no que se vê no céu, e as estrelas são um detalhe irrelevante. Tende-se a confundir a Cosmologia com a Astrofísica e a Astronomia, que são coisas completamente diferentes. As estrelas são parte de uma galáxia, a galáxia é como se fosse um átomo de um fluido enorme que é o fluido cosmológico, que ainda por cima vem de há biliões de anos atrás, e isso torna-se tudo tão abstrato que a certa altura as pessoas perdem-se.
Porque é tão importante para o homem perceber o Big Bang? Ajuda-nos a acalmar os nossos espíritos conhecer a origem de tudo?
Acho que há um lado filosófico, quem somos nós e de onde vimos, e um lado prático. A tecnologia agora é toda baseada na teoria da relatividade. Ninguém sabe de que ideia pode vir a próxima tecnologia, e dão-nos dinheiro em parte por causa disso. O Big Bang tem muito de filosófico: o que existiu antes, houve uma coisa ou viemos do nada. O que é o nada?
O nada também é algo?
Sim, exatamente. Na mecânica quântica o nada é algo, na física newtoniana não era. São ideias que vieram da religião e da filosofia e que todos querem saber por motivos distintos. Nós cientistas fazemos estas perguntas porque nos dá gozo a descoberta. Há uma adrenalina muito especial quando se descobre alguma coisa única, é talvez como marcar um golo para um futebolista.
Como vês o trabalho que se faz no CERN e o acelerador de partículas?
Há sempre este debate, eu acho aquilo uma loucura extremamente cara.
Quem são os teus mestres?
O Einstein é o nosso grande mestre, foi o primeiro físico teórico, até aí não existia sequer esse conceito. Mas contestá-lo hoje é o que nós todos fazemos. Acho que isso foi mal explicado na imprensa. Mas eu preciso de escapes, preciso de viajar, preciso de escrever estas coisas. Não posso fazer só ciência senão dou em doido, é fundamental para criar equilíbrio mental, senão fundo o cérebro. É libertador.
Entrevista publicada na VISÃO 1285 de 19 de outubro