Era uma vez um pai de família mergulhado num mar de contas e facturas. Quanto mais o dia de aniversário dos filhos gémeos se aproximava, mais ele se angustiava às voltas com o orçamento familiar. Esticava daqui, cortava dali, contava tostões. Endividou-se mas esmerou-se na compra de uma bicicleta reluzente topo de gama. Para o outro filho, não se preocupou. De regresso a casa, varreu um bocado de estrume para dentro de um embrulho. Mal viu a bicicleta, o gémeo beneficiado contristou-se: não gostava da cor. Enquanto isso, já o irmão dava pulos de alegria com o seu presente. Se agora lhe davam o estrume, para o ano vinha de certeza o cavalo… Um optimista, portanto.
De volta à realidade: Portugal, ano de 1998, tempos de governação estável, economia saudável e inaugurações empolgáveis. Os portugueses foram contagiados pela febre. A febre do optimismo. Não do optimismo da anedota, miserabilista e naïf. Antes, um optimismo traduzível em cifrões. Eufórico como muitos, especulativo como nunca e despesista como não podia deixar de ser.
Por todo o lado, as finanças dos cidadãos fervilham. O dinheiro circula, muda de mãos a um ritmo quase frenético. Os pedidos de empréstimo sucedem-se, a previdência é sacrificada ao investimento, esvaziam-se as contas a prazo e a taxa de poupança não pára de descer (de 14,9% em 1993 para 13,5% em 1996). A bolsa está em alta e o mercado imobiliário atravessa tuna verdadeira roda-viva. Os construtores vendem prédios inteiros ainda em tijolo e os notários não têm mãos a medir para tanta escritura (230 mil num ano). O futuro tornou-se economicamente fiável com a ajuda dos indicadores estáveis do desemprego e inflação. E o recurso ao crédito (que quase quintuplicou desde 1991) converteu-se num modo de vida nesta sociedade empanturrada de apelos consumistas. Todos acreditam no «compra agora e paga depois», confiam na liquidez das bolsas vindouras, prognosticam bom tempo para amanhã e, quem sabe, até caldeirões de ouro no fim do arco-íris. Só que, como se sabe, depois das bonanças regressam as tempestades, a um boom segue-se um crash, e a uma tão grande embriaguez de crédito, uma monumental ressaca.
PÁRA, ARRANCA
Corria a década de 80 e Miguel Esteves Cardoso falava, numa das suas crónicas, na árdua sobrevivência de um optimista em Portugal. Só comparável a «um banhista das praias da Gronelândia». A modalidade mais praticada de pensamentos positivos, era, dizia, o «optimismo retroactivo»: «No fundo acreditamos que o passado vá melhorar para todos nós. Cada dia que passa o passado torna-se mais desejável. Lá, há um lugar para todos os portugueses. Nunca chove, nunca inflaciona, nunca falta alegria.» Luís Rodrigues, sociólogo e professor na Universidade Nova, prefere o termo «cicloptimismo» (optimismo cíclico) para caracterizar estas vagas de bom astral que volta e meia assolam Portugal. País de fado, de velhos do Restelo e temperamentos contidos é, acima de tudo, «antropologicamente inconstante». «Nos últimos 20 anos a vida dos portugueses tem-se pautado pelo ritmo do stop and go. Agora parece que estamos numa fase de apenas go.» Go para o euro. Go para a Expo. Go para pontes, viadutos e outras obras de encher o olho. E claro que com todas estas «lufadas de credibilidade nacional», o ego dos portugueses vai inchando. São as repercussões psicológicas desta dinâmica de inaugurações, de estações primeiro-mundistas no metro lisboeta, dos hipermercados e centros comerciais com ar daquilo que sempre fomos mas nem sempre parecemos: país europeu. E o optimismo propaga-se como um vírus e alastra como uma epidemia.
«Existe uma conjuntura sedutora por nos sentirmos no clube dos europeus de primeira. O índice de conforto dos portugueses tem aumentado e isso nota-se pelo número de telemóveis, automóveis e computadores», continua o sociólogo.
O GOVERNO ROSA «VENDE-SE MURO BEM»
Ao tom cor-de-rosa com que os portugueses pintam o futuro não foi alheia a cor política do Governo. Para Luís Rodrigues, um sintoma da estabilidade institucional é o próprio refrear do semanário O Independente enquanto jornal de escândalos políticos. José Manuel Palma-Oliveira, psicólogo social e professor na Faculdade de Psicologia de Lisboa, refere a habilidade do Governo PS para manter as tensões sociais em banho-maria: «Cultivam o estilo de descompressão de conflitos e de desradicalização de posições.» Aparentemente, tudo está apaziguado, como se os protestos e as manifestações fizessem parte da rotina democrática. Uma paz aparente? Um bem-estar virtual? Pode ser. Certo é que o discurso da desgraça já não tem receptividade. As noites de insónia existencial não estão na moda. Ninguém dá ouvidos aos profetas do caos. Ninguém quer ouvir falar de insegurança, de crise, de escassez, dos dois milhões de pobres. E a própria oposição ter-se-á apercebido disso.
Autênticos especialistas em explorar o filão psicológico do optimismo são os publicitários, os políticos e os padres. Os primeiros servem-se dele para impingir produtos e anunciar marcas. E assim o cliché publicitário, cheio de famílias exultantes ao pequeno-almoço a devorarem flocos e adolescentes a quem tudo corre bem depois da clássica dentada no chocolate. Já os políticos alternam o discurso pessimista e optimista consoante estão na oposição ou no Governo e os padres, como lhes compete, pregam a mensagem de alegria e confiança do Evangelho.
«O Governo rosa vende-se muito bem», comenta José Carlos Campos, director criativo da agência J. W. Thompson. E sugere mesmo passar a chamar-lhe o «executivo dos três pês»: «Têm 15% de padre, dada a vertente católica de primeiro-ministro, 80% de político e 5% de publicidade.» Segundo ele, o marketing utilizado é ultra-eficaz. Cultiva-se o tom cordial e ponderado sem tocar o extremo do optimismo agressivo e triunfalista, repleto de oásis e miragens do cavaquismo. «As empresas são a cara do dono. E o País também se está a tornar na cara dos seus governantes.»
A boa disposição é, garante José Carlos Campos, qualidade inata nos publicitários. O que não significa que vejam tudo cor-de-rosa. «Os portugueses ainda estão longe de ganhar a última batalha: a qualidade de vida.» A começar pelas crianças convertidas em mini-yuppies escolares, iniciadas muito cedo no stress dos adultos. Ângelo Correia, conhecido pelo modo efusivo de fazer política, caracteriza 1998 como «o ano da distensão social». «A aparência que decorre da nossa entrada no euro e a grande vaga de inaugurações transmite a ideia de optimismo e esperança. O problema é que isso encobre algumas questões mal resolvidas.» Também o padre Vítor Melícias é cauteloso: «Se não tenho a sensação de que haja verdadeiro optimismo, sinto que as pessoas estão menos permeáveis a informações pessimistas. A própria entrada para o euro, a imagem positiva de que o País goza e alguns indicadores económicos são de molde a que as pessoas sintam vontade de que as coisas estejam mesmo a melhorar. Se não crêem, querem. Oxalá não as decepcionem.»
VENHAM A NÓS OS BEBÉS
Isabel Gonçalves, 33 anos, professora do 3° ciclo confessa: índices de crescimento económico, PIBs e taxas de juro nunca se intrometeram no seu desejo de ser mãe. Queria ter filhos e isso era mais forte do que o estado favorável ou não das conjunturas nacionais. Primeiro veio o Rafael, hoje com dois anos, e depois de uma assentada os gémeos Alexandre e Julieta, seis meses. E mesmo no fim do dia, depois das refeições triplas, dos banhos em série, quando o cansaço ameaça ultrapassar o limiar do suportável, Isabel não deixa esmorecer o optimismo: «O importante é não embarcar em lamentações. Se nos deixamos ir abaixo é o caos.» Não perde o sono a pensar se este é mesmo o mundo perfeito para receber crianças. Pelo contrário. «Tenho confiança nas gerações mais novas. Serão elas que vão salvar isto tudo e reparar os erros que continuamos a cometer.» Em 1996 nasceram 110 363 bebés. Em 97, só entre Janeiro e Setembro o número de nascimentos elevou-se a 85 139 (mais cerca de 5% do que o costume). Desde 1975 que não se via nada assim. Contrariou-se a tendência insistentemente descendente da natalidade em Portugal — dono de um dos índices de fecundidade mais baixos da Europa. E esta inversão pode ser mais um sintoma do optimismo nacional. Manuel Villaverde Cabral escreveu numa das suas crónicas no Diário de Notícias: «Hoje em dia os casais já não fazem filhos para assegurar a velhice. Em contrapartida, é evidente que, se não tiverem esperança de garantir aos filhos um futuro melhor, pura e simplesmente não terão filhos. (…) Há em Portugal um indiscutível capital de esperança.» Os demógrafos são prudentes e temem interpretações abusivas. Nem sequer falam de «inversão de uma tendência», apenas de «um ligeiro aumento» perfeitamente explicável dentro das oscilações dos efectivos populacionais. «Não prevemos que num futuro próximo a natalidade em Portugal torne a subir até ao desejável — 2,1 filhos por mulher», diz Maria José Carrilho, investigadora do INE. Não há grandes esperanças de voltar a garantir a substituição das gerações. O envelhecimento está em curso.
Professora da Universidade Nova, Maria João Valente Rosa, associa o aumento dos nascimentos ao facto de existirem agora mais mulheres em idade fértil. Os fluxos imigratórios e o retardamento do projecto de ter filhos — agora tanto as mais novas como as mais velhas são mães — não terão sido alheios à lotação dos nossos berçários. Números à parte, a natalidade tornou-se na imagem perfeita para o quadro da felicidade. Quase como uma moda. Senão, sugere Maria José Carrilho, veja-se a quantidade de cantores, actrizes e top-models na capa de revistas irradiando alegria junto aos seus rebentos.
BANDEIRAS DESPREGADAS
João Pedro Nogueira, 40 anos, faz parte daquele grupo de pessoas que olha para um copo meio vazio e acha que ele está meio cheio. Optimista por natureza, empresário por profissão e motard por vocação, fala de uma «vida-jackpot» como uma colecção de momentos altos e de bons motivos para se sentir bem. O seu negócio vai de vento em popa, «tenho três filhões saudáveis, bons alunos, bons desportistas», o dinheiro suficiente para não se preocupar com ele. «O que posso querer mais?» Frase sim, frase não interrompe-se para dar uma sonora gargalhada. E um apaixonado por ralis todo-o-terreno e competições no deserto mas nunca ficou em primeiro lugar. Quase como aquele senhor do anúncio que jogou tudo no vermelho e saiu o preto. Só que João é especialista em deitar tudo para detrás das costas, reconciliar-se com as batalhas perdidas e dissipar num ápice todas as energias negativas.
Umas das dezenas de fotografias que decoram a sua sala mostram-no a tentar escapar pela janela de um carro de competição capotado. Foi há pouco mais de duas semanas e é mais um bom motivo para João soltar uma gargalhada. Muitos desastres, alguns ossos partidos e muita chapa amolgada que se convertem, quase por artes mágicas, em boas recordações. Há quatro anos sofreu um terrível acidente na estrada da marginal que o deixou em coma e durante seis meses em estado de amnésia total. Regressado à realidade, apetecia-lhe acrescentar mais horas às 24 existentes. Sentiu-se mais feliz que nunca e o apego à vida era tal que o obrigava a levantar-se às seis da manhã para calcorrear quilómetros no alto da sua mota.
Nem a avalanche de más notícias nos telejornais conseguem beliscar a sua boa disposição. Tem a consciência tranquila de quem faz o que está ao seu alcance para minorar os males do mundo. Quando um arrumador lhe vem cobrar a moedinha da praxe, João oferece-lhe antes o cartão dos recursos humanos da sua empresa de limpezas a oferecer emprego. Até agora só um apareceu e ainda lá está a lavar comboios.
Para dizer a verdade, até pressente o clima de confiança actual, mas continua a sentir o seu optimismo pouco acompanhado neste «país pequeno, triste onde tudo parece difícil». Isabel Leal, psicóloga e professora no ISPA até compreende que João se sinta um exemplar raro nesta terra de «gente desconfiada por sistema». Está generalizado o pudor em assumir-se feliz. E quase obsceno estar contente à beira de tantas desgraças mundiais.
«Não apanhei sida, não vivo sozinho, não estou desempregado, obrigado Deus meu.» Para a psicóloga este raciocínio é totalmente irrealista. Ninguém fica feliz pela negativa, ninguém se contenta por ter o pão de cada dia, um amor e uma cabana. Ninguém se compara com aqueles que estão em pior situação e a desgraça dos outros não é consolo. Na construção da felicidade pessoal «a realidade é muito menos importante do que as nossas expectativas», explica. Além disso, costuma dizer-se que um pessimista é um optimista bem informado.