O que os grandes chefes políticos geralmente não ouvem, porque a língua popular trava a tempo, é a fórmula brutal de um agricultor de Paranhos da Beira para marcar distâncias: «Político aqui é sinónimo de corrupto, vigarista e ladrão.» Também há quem responda de maneira patética acerca das próximas eleições, «não voto, não vale a pena, estão-nos pisando». Ou quem de todo se feche num silêncio prudente: «Sou reformada, desculpe, não me posso pôr para aí a falar.»
O diálogo resvala inclusive para a história na primeira pessoa desesperada, como aconteceu com um sem-abrigo de Lisboa:
«Eu era auxiliar de acção educativa e quando vim para cá apaixonei-me por uma colega minha. Um dia, ela disse-me que não queria continuar a viver comigo, porque era lésbica. A partir daí desorientei-me, comecei a dormir dentro de carros e nunca mais fui o mesmo.»
Voltemos então aos políticos, que sobram do segundo parágrafo e a quem Rita Brito, dona de um bar em Lisboa, na zona de Santos, só poupa em raros casos:
«Interesso-me por eles como personagens. Vejo-os com algum sarcasmo. Mas há homens que me parecem inteligentes, por exemplo Santana Lopes.»
O madeirense José Rodrigues, do Machico, motorista desempregado, atira sobre eles a matar:
«A política é a coisa mais suja que nasceu» — à face da Terra, entenda-se.
Porque prometem tudo durante as campanhas eleitorais e depois roem a corda? António Ninó Andrade, figura assídua nas páginas «sociais», di-lo com palavras naturalmente mais cuidadas. Mas fazendo questão de verberar a política tal qual se pratica em Portugal, por ser «muito suja, muito de corredor», afinal quase o mesmo que o machiquense, ilha à parte. É ainda Rita Brito que acrescenta:
«Os discursos dos políticos não passam de pescadinhas de rabo na boca: andam à volta, à volta…»
E Lili Caneças, cuja foto surge amiúde nas mesmas revistas que trazem Ninó Andrade:
«Não passa pela cabeça de um miúdo bem formado vir a ser político!» Ponto quase final.
Mário de Carvalho, sócio-gerente do bar Indústria, no Porto, e ex-manager dos Táxi, vai um pouco mais longe e confidencia-nos no seu gabinete:
«O que me surpreende é a adaptação dos mais novos ao sistema. A juventude adere ao PSD em vez de se revoltar, como é normal nesta idade. Digo isto apesar da ‘revolta das propinas’. Por mim irei votar contra a estabilidade fictícia. A participação das pessoas é nula, não sabemos quem lá pomos (nos órgãos do poder). A direita e a esquerda convergem, aliás, para o centro e aniquilam as diferenças.»
Mineiro há quase uma década em Aljustrel, António Góis casou-se não faz ainda 15 dias, mas não gozou lua-de-mel, «o dinheiro não dá para essas coisas». E tão-pouco lhe apetece participar nas eleições de Outubro, pois «nem sequer sei o que é votar, pertenço ao maior partido português, o dos abstencionistas».
PESCA VAI AO FUNDO
Diz-se que o PS tem boas perspectivas. Manuel Paparrola, o pescador da Nazaré que citámos mais acima, garante que na vila, aos homens do mar, tanto se lhes dá PS como outro partido qualquer, estão até aqui de chatices e trampolinices, como seja o abate compulsivo das cercadoras para a pesca da sardinha, por imposição comunitária: restam duas em actividade. Ao que o seu companheiro António Lopes junta esta outra informação: os pescadores, mesmo com 30 anos ou mais num barco, não recebem qualquer indemnização — todo o subsídio do abate vai para o proprietário.
E no entanto parte do dinheiro que rende a pesca, lanço a lanço, em cada viagem da embarcação, é descontada na percentagem do pescador para despesas com o radar e a sonda, dispositivos que o proprietário, uma vez em seco e disposto a mudar de vida, pode vender à parte — sem o barco agarrado, na altura em que este é destruído. É assim que um tripulante comenta:
«Quem fica beneficiado é o patrão. O pescador anda sempre à deriva.»
A pesca, ó senhores bem calçados, vai ao fundo com uma pedra a dizer «Europa» presa a um baraço e este enrolado ao pescoço. E para quem fica desempregado no mar, as hipóteses de arranjar trabalho são escassas, na Nazaré como no resto do litoral. António Manuel, mais jovem do que Paparrola ou Lopes, coça a cabeça e pergunta. «Emprego nesta terra, onde?» Para se enredar logo de seguida na ideia mirífica: «Ah, se pudesse emigrar.» Mas a Europa dos abates não o quer.
Ele e os amigos juntam-se agora à conversa no balcão do Maneta, lá no alto do Sítio. Teve mais sorte D. Fuas escarranchado no cavalo: ia para se despenhar atrás do corço que era o diabo e com dizer «salvai-me, Virgem Mãe de Deus» as patas dianteiras da montada cravaram-se na rocha, ainda lá está a marca.
Sempre falando de pescadores, na zona de Aveiro (Ílhavo, Mira, Gafanha da Nazaré) há dois mil desempregados da pesca longínqua. Dos 52 navios portugueses licenciados em 1991 só para o Atlântico Norte, sobra quatro anos depois somente uma dezena, e destes apenas oito estão a trabalhar. Mas a esperança é a última coisa a morrer: as listas de inscrições para um emprego «no bacalhau» não param de crescer em Aveiro. Moribunda que esteja, a arte ainda oferece 32 contos por mês no mar e 16 em terra. O país zangado contenta-se com um dinheirinho de nada.
Rebobinemos o filme atrás de Manuel Paparrola. Como sempre, ele faz sinal de luzes antes de entrar no porto, cerca da meia-noite e meia, para que em terra as mulheres saibam que a companha está a chegar. Dentro de mais meia hora estarão em casa (onde as mulheres fazem lei). Mas antes, o pescado trazido pelo Nova Estrelinha ainda terá de passar pela lota, onde ficará à disposição dos Batata, uma família que é, em 1995, quase a compradora única e regular de peixe na vila.
Esta noite os Batata dispõem-se a pagar 3 400$00 por cada um dos 30 cabazes de 20 quilos de sardinhas desembarcados. Os homens de Paparrola levam pois consigo, feitas todas as contas, um máximo de 2 000$00 no bolso.
Mais a norte da Nazaré, digamos mesmo a norte de Aveiro, na praia da Torreira, turistas e curiosos juntam-se a certas horas para ver as juntas de bois que arrastam para terra embarcações cheias do peixe do dia, carapau, depois descarregado por grupos de homens e mulheres. São a gente da arte da xávega, uma das mais antigas — e também mais pobres — artes de pesca portuguesas. As redes são largadas a curta distância da costa e mais tarde puxadas por bois: faz tempo que estes substituem na zona de Aveiro a tracção humana, que já só se mantém na Nazaré.
Por tradição são os reformados, os muito jovens e principalmente as mulheres que trabalham na fase final desta arte, dada a magreza dos lucros. Agora a xávega anda um bocado pior, se tal é possível — é que as espécies rareiam. Da costa aveirense desapareceram praticamente a corvina, o peixe-espada, a tremelga ou o peixe-galo, ficou, amo e senhor, o solitário carapau.
Rosalina Costa, 68 anos, recorda-se bem de ter andado na xávega quando ela e os outros é que puxavam as redes. Diz com um meio sorriso:
«Dantes os bois éramos nós…»
Cada membro da companha usava um tirante, feito de bocados de rede e serapilheira, com que amortecia o peso das cordas roçando no lombo.
Rosalina também andou na seca do bacalhau que havia em São Jacinto, a um quarto de hora por estrada da Torreira, indo-se de carro. E como só restasse a partir de certa altura a xávega, lá voltou ela para trás, olhos fitos em «qualquer coisinha» com que pudesse arredondar a reforma (se se há-de chamar reforma a isto) de 16 contos mensais deixada pelo marido há 12 anos, quando morreu.
Puxar as redes demora entre hora e meia e duas horas, sempre à torreira do sol — quando há, e daí o nome deste pedacinho do litoral que nas traseiras esconde a Ria. A operação de puxar pode ser repetida, quando o mar está bom, três a quatro vezes por dia. Ora bem, e depois? Depois, descontada a percentagem do patrão — que tão-pouco ficará rico —, mais o que ganham boieiro e bois, o lucro do pescado é dividido em partes iguais pelos homens e mulheres da xávega.
Há duas semanas, porque também vai ao mar, grande coragem a sua, com os homens, Ermelinda Silva, 20 anos mais nova do que Rosalina, tirou dez contos de réis. Mas para quem fica em terra a arte não rende mais de quatro por semana. Arte da pobreza, outra não há como ela!
Cândida Marques, apesar dos seus 32 anos, lembra-se perfeitamente de serem as pessoas e não os bois a puxar as redes. Aliás, foi esse o seu ganha-pão até há 17 anos, quando «alcançou» da filha. Hoje, vive do que consegue biscatar, que é nada, mais a pensão do marido, pensão de invalidez por ter padecido aqui há anos uma trombose.
«Só andamos nisto porque não há mais nada», diz Cândida. No Verão, com o afluxo dos banhistas, a população mais que duplica e respira-se um pedacinho melhor.
Políticos de visita à xávega, livra-te, nem Cândida nem ninguém do burgo se lembra de ter visto algum em tempos cristãos, mormente em campanha eleitoral. Ora bem, mas suponhamos que aparecia: então, à uma, as mulheres da Torreira pedir-lhe-iam uma coisa simples, uma fábrica, «de calçado ou de costura». Uma! Isso, sim, seria um futuro, juram elas.
FALAS DE LAVRADORES
Já nos autos de Gil Vicente os lavradores falavam da sua grande «paixão», leia-se vida dura e mal remunerada. Séculos depois, caminhando por terras de milho, batata, vinha e pasto, o repórter da VISÃO vai dar em plena Beira, para maior precisão no lugar da Lameirinha, perto de Cativelos — tudo terras de Deus e dos homens, bem misturados —, com um senhor que lhe diz:
«Quer comer cerejas? Ora então pare aí na estrada e sirva-se, que até lhe agradecem!»
De forma que ao tropeçar em Angelo Abrantes, 73 anos, e sua mulher Maria da Predicação Almeida, 75, vê-os como excepções ao deserto em que ameaça transformar-se o Portugal agrícola. Cordiais, oferecem-lhe vinho — «bote» — e falam assim:
«Estes terrenos eram do Hospital de Gouveia, é a ele que pagamos a renda, mas parece que agora é tudo do Estado. Tenho anos (fala o marido, enfim) de vender 200 arrobas de batatas (três toneladas). No ano passado acabei por vendê-las baratas, a 420$00 a arroba (28$00 o quilo), e depois subiram por aí acima até aos 520$00 e mais. Foi dinheiro que não ganhámos, mas não temos quem nos aconselhe. E quem pode adivinhar?»
A agricultura está a dar? Réplica na ponta da língua:
«Nada. Olhe o senhor, o pessoal é caro e não aparece, por isso temos de ser nós a fazer o que podemos, o resto fica… Deixei terras por cultivar porque o pessoal pede de jorna dois contos as mulheres, dois e meio os homens, mais almoço, jantar e bebida por todo o dia. E não rendem o que pagamos. E se prometem vir, mesmo assim não aparecem. Enxadas não me faltam, haja quem as toque! Quer uma?»
Os filhos, seis, estão todos «arrumados»: quatro na Alemanha no seu arbeit, os outros dois voltaram a Portugal e, «que remédio, ficaram nisto».
Além das batatas e do vinho o sr. Ângelo tem 2 500 pés de videira. Fez uma ocasião seis tinas de vinho, no ano passado não pôde passar das duas e meia. Então este ano vai ser um desastre: falta a água, tombaram as geadas.
«Futuro, nisto? Se o Governo não nos ajudar não há mais nada. Olhe, eu já fui à Cooperativa (Vinícola) de Tázem para eles virem cá ver, mas até ao momento ainda não apareceu ninguém. Só queria que me amparassem! Mas qual quê, é tudo só lá para o Alentejo e o Algarve, aqui para os pobres não há nada. E depois mandam vir as coisas de fora, o que é nosso não tem valor. Vá lá uma pessoa perceber.»
Pobres não são propriamente o sr. Ângelo e a sua senhora, mas um agricultor, quando chega a velho, recebe de reforma 19 600$00 ao mês. Por isso eles dizem:
«Se não trabalhássemos não dava sequer para a gente se vestir.»
Eleições, ora adeus. Comentam em uníssono:
«Uma pessoa deita o voto, pois deita. Mas tanto pode sair um como outro, é igual. Bom, de certeza, é para quem está no poleiro.»
Mais à frente, quase a entrar em Gouveia, vem António Cardoso, 78 anos, de dar um jeito nas batatas. O sol cai, ele regressa a casa. O discurso parece preparado:
«Isto é ingrato, umas vezes dá, outras não. Quem pode fazer alguma coisa por nós? O Governo? O Governo dá aos que não precisam: eles governam mas não é para os outros, o dinheiro vem à mão e é todo para eles, não são doidos!»
Tem três filhos. Os dois homens, um em França e o outro na fábrica (de lanifícios), «desenrascaram-se como puderam», o que está em França «comprou uma quinta aí adiante, mas não lhe rende nada e ainda tem de pôr dinheiro para continuar»; a filha está em Lisboa, onde tem um minimercado.
«A agricultura não acaba, acho eu», diz para ampliar o diálogo, «o que tem é pouco desenvolvimento. Em morrendo os velhotes da minha idade, fica tudo de rastos. Vê aquela serra? Dantes dava centeio, hoje não dá nada.»
Remata sem notar que se contradiz («a agricultura não acaba», etc.,):
«Isto não tem cura, vai acabando ‘a pouco’.»
O repórter segue para Paranhos da Beira (José Rodrigues: «Aqui político é sinónimo de corrupto, vigarista e ladrão.») Também diz de sua justiça:
«A agricultura como empresa não existe nem tem futuro nestas terras. Na maior parte dos casos está a ser feita por quem não precisa dela, os outros andam a empobrecer alegremente. Esses de que falo vêm de retorno, compram casas, reconstroem-nas, arranjam um caseiro e reavivam a agricultura. No geral, a agricultura está sem planeamento, semeia-se milho onde deviam estar batatas, e coisas assim. Fazem cursos como os dos novos agricultores, mas são uma forma de receber dinheiro: vai-se lá sacar, os formadores nem sequer estavam habilitados. Ideia boa, resultado zero.»
Mas, adianta, «nas aldeias desta zona nunca se teve tanto dinheiro como hoje em dia» — poupado, entesourado da reforma, tirado da boca. Qualidade de vida? Que miragem!
A crítica sobe de tom em Faia, Sernancelhe, onde o repórter topa finalmente os lavradores da nova geração: Francisco Oliva Teles, 30 anos, e o cunhado, Pedroso Leão, quarenta. Este último veio dos escritórios da zona industrial de Paços de Ferreira, «capital do móvel», em cumprimento de uma vocação — a família tinha tradições no ramo da lavoura. Também eles se queixam. Pedroso Leão:
«Veja só o que fizeram. Aqui a ordem para gastar os milhões da UE era investir em frutos secos, ovinos e caprinos. Acontece que não deu, e cinco anos depois toca a arrancar as árvores. Tínhamos aqui aveleiras, mas como houve acordos de parceiros comunitários com países terceiros que apresentavam produtos mais baratos, vá de se fazer marcha atrás. Mas não é tudo, agora ando a vender o borrego mais barato do que o comprava há dez anos para consumo próprio! Eu estou na agricultura porque posso estar, a minha mulher é professora e sustenta a casa. Não levo daqui um tostão.»
Oliva Teles:
«A questão é política. O dinheiro é mal distribuído, com os cereais a ‘comerem’ disparatadamente. Queremos que falem connosco, que digam o que querem de uma vez por todas, para não andarem por aí a enganar as pessoas. E não venha o ministro encher a boca com um rendimento de seis por cento ao ano. Por amor de Deus!»
Há tempo, o ministro passou por Sernancelhe ftt!, mas não parou. E havia quem pretendesse falar-lhe das recentes geadas, verdadeira gota de água após dois anos de enormes prejuízos, estava tudo em polvorosa e os líderes do movimento reivindicativo clamando por subsídios — as seguradoras recusam o factor risco e, nisto de pagar, o tanas é que pagam! É claro que os líderes estão claramente a cair na oposição, com convites PS e PP.
UM DIA MAU, OUTRO PIOR
O país zanga-se ainda mais quando lhe vêm com a cantiga da retoma. Se a pesca se afunda e a lavoura ziguezagueia como abelha no rosmaninho, na Marinha Grande o vidreiro José Bonito, 48 anos, desde criança — quando não se falava em trabalho infantil — a trabalhar na única arte que deveras aprendeu, faz um esgar de imensa melancolia para dizer:
«Se calhar somos uma espécie em extinção…»
Ele é filiado no PCP e aponta como inimigos o Governo e o partido do Governo:
«Toda a gente reconhece que o PSD destruiu os principais sectores produtivos do país. Durante o tal período gonçalvista soube o que era passar uns dias de férias no Algarve, num hotel, hoje nem sonhar em lá chegar, o mais que posso é ir até São Pedro de Muel, aqui ao lado. Há muito que tivemos de cortar nas comidas fora de casa e nos passeios. Bife todos os dias? Só o indispensável para uma pessoa aguentar e manter a dignidade. Faz-se o que se pode para não andar descalço nem roto.»
Quatro anos mais velho, o seu colega Manuel dos Santos, arrastado para o drama da Fábrica Pereira Roldão, jura que «nada se modificou (com o 25 de Abril), continua tudo como dantes.» Só mais uns parágrafos:
«O país está um caos. Já nem me indigno quando me dizem que estamos pior do que no tempo do fascismo. Antes do 25 de Abril nunca vi tanto desespero como o que agora existe: há pessoas a passar fome mas não o reconhecem, têm vergonha. Eu, logo que saio da fábrica, aí pelas cinco da tarde, vou para casa e amanho a terra até às nove, dez da noite. E a minha mulher também começou a trabalhar a dias. Afinal temos dois filhos a estudar.»
Como votará Manuel dos Santos?
«Eu sei que eles só querem o nosso voto e os nossos impostos, por isso limito-me a escolher sempre o mal menor.»
Em Lisboa, no Centro Comercial Amoreiras, é a classe média que se queixa: sente-se insegura e mal paga, e olha com desconfiança a classe política, um tópico à dimensão nacional. Quatro jovens quadros, empregados em firmas vizinhas, confraternizam à hora do almoço no Verde Coco e parecem dizer coisas banais. Que afinal não o são, pois logo um atira a sua farpa:
«A única profissão que tem conhecido uma notória expansão nos últimos anos é a de arrumador de carros.»
Sabem por que o dizem, e não se andam muitos metros, digamos até Campo de Ourique, sem ouvir propósitos semelhantes. Aqui o lamento é também o das donas de casas ilustradas com cursos superiores, que lêem a paisagem urbana sem meter explicador. Manuela de Melo, minhota de Caminha, casada, dois filhos:
«Insegurança? Pois, com o Casal Ventoso praticamente aqui ao lado… Mas em Campo de Ourique há de tudo, estão sempre a abrir lojas. O mercado é que é caro: tudo bom, mas por exemplo a fruta é incomportável.»
Graça Magalhães, alentejana de Beja, casada, dois filhos também, concorda com a pertinência de um problema como o da (in)segurança, mas acha que o económico deve, esse sim, ser colocado à frente dos demais:
«As solicitações são cada vez maiores e os salários não chegam para tudo. Claro que é importante as pessoas desejarem cada vez mais coisas, melhorarem a sua situação, mas por outro lado é frustrante chegar-se a um ponto em que se sabe que só é possível fazer algumas coisas, talvez muito poucas mesmo.»
Cavaco Silva prometeu que baixaria os juros e os juros subiram, ouvimos a outro interlocutor. Mais de uma pessoa pergunta-se e pergunta-nos, a nós que não temos a mão na massa: para onde vão os impostos? Ninó Andrade, tudo o que há de mais educado e de mais cordato, põe o dedo na ferida:
«Se as pessoas soubessem que o dinheiro dos impostos era para melhorar a sua vida, para a saúde, a educação, a segurança social, pagavam-nos com muita alegria.»
Nos Açores tudo isto leva um distinguo, como na Escolástica: a autonomia. O sr. Rui, que não quis dizer o resto do nome e tem por acaso uma lavoura rica e uma casa de estalo, falou connosco em São Miguel, sem esconder tão-pouco a sua irritação com o líder do Governo Regional:
«O 25 de Abril não chegou aqui, só vai chegar quando o Mota Amaral se for embora.»
Eleições todos os anos, isso é que era bom, garante o sr. Rui: para os lavradores receberem os subsídios sempre a horas. Escarninho, continua:
«O povo é como uma folha seca, anda numa valeta consoante vai o vento, ora para cima ora para baixo. O que o Governo fez não foi dar-nos autonomia, foi dar dinheiro a quem já o tinha e se habituou a viver acima das suas possibilidades. O Mota Amaral dá dinheiro a todos, perdão: só a alguns.»
Se ao menos se apostasse na qualidade! Mas não, e o sr. Rui põe de parte a cerveja local, a Melo Abreu, para beber somente da importada. Qualidade!…
«Veja o senhor o caso daquele emigrante de Vila Franca do Campo que pediu um subsídio para abrir uma fábrica de confecções. A fábrica abriu em 1993 e fechou em 1994. E ele arrecadou mas foi o dinheiro. Deu por acaso no telejornal. É um desrespeito para o povo.»
Depois emenda e diz:
«O povo açoriano está acomodadíssimo. São todos Bobbies (cães) do Mota Amaral. Aqui nada se faz sem padrinhos, é tudo compadrio.»
À insularidade junta-se a insularidade. O sr. Rui explica: subsídios à lavoura que vão para umas ilhas e não chegam às outras, transportes marítimos miseráveis, hospitais que…
«O novo Hospital de Ponta Delgada são oito buracos. Precisaram de engenheiros suecos para o fazer e depois tiveram que alargar as portas porque as macas não passavam.»
O sr. Rui acha que Mota Amaral «não é carne nem peixe», o Alberto João (Jardim, da Madeira) comporta-se diferente, fala o que tem a falar.
«Este não sabe nem viu, diz que não é de cá e deixa andar.»
Mas na Madeira as coisas não são assim tão pacíficas. Ernesto Correia, 31 anos, casado, dois filhos pequenos, trabalhador-estudante a frequentar o 1.° ano de Física na Universidade local, pensa que os políticos não representam a oitava maravilha do mundo:
«Vão para a política para se autopromover. É assim que vejo mais de 90 por cento deles. Eu não ligo muito à política, leio os jornais e chega. Mas vem aí a campanha, vou interessar-me um bocado mais, embora seja a mesma fantochada: vêm com as bandeiras e os discursos e ficamos sempre sem saber as questões de fundo. As pessoas não avaliam este Governo Regional pelo que faz, mas pelo que o Alberto João diz durante a campanha que vai fazer. No Continente, pessoalmente, admiro o Cavaco, mas acho que os que o rodeiam não estão à altura dos pensamentos dele.»
Política, «a coisa mais suja». É como se diz no Machico, onde a situação madeirense é vista assim: tudo a trabalhar «para sustentar os gordos» e «os nabiças», ou «uma cambada de bandidos» que são os senhorios. José Rodrigues não será o único a falar grosso, pois do lado interrompe Manuel Cabral, 64 anos, reformado com 27 contos mensais, dois dentes na boca: pouco mais lhe resta de uma vida de trabalhos e maus cuidados. Diz:
«Eleições? Para quem é pobre não vem nunca nada de bom. Os políticos estão explorando o povo, têm a barriga cheia e os pobres a amarinhar! Não voto, não vale a pena, estão-nos pisando muito.»
E em Câmara de Lobos lá vem a do presidente da Câmara que disse que não prometia nada «e nada fez», grande cabeça! Com um problema adicional, trazido à conversa por João Henrique, o «Conjunto», 58 anos, pescador, que é o da congelação do peixe:
«O Estado dá o gelo à hora e pelo preço que quer. Vem-se cansado do mar, chega-se ao cais e tem de se esperar horas para descarregar. Não paramos de trabalhar porque os peixes estão sempre lá à espera. Mas às vezes queremos ir ao mar e não podemos, ou então não se congela o peixe, que vai fora ou descai (apodrece). Se a tabela de preços tem de ser como está, ao menos deixem-nos arrumar o peixe, não o mandem morto para o mar.»
SEM IRA NEM PAIXÃO
André Gonçalves Pereira, 58 anos, advogado e ex-ministro (dos Negócios Estrangeiros), adverte-nos de que não gosta de dizer banalidades pela simples razão de ser vaidoso — e ter reconhecidamente humor. Mas vêm dele as palavras implicitamente mais calorosas, em todo o caso sem ponta de azedume, para com a actual governação:
«Considero que há mais qualidade de vida: o PIB per capita aumentou, há a liberdade de escolher, de como viver, apesar de alguns sobressaltos. A nação portuguesa conseguiu ultrapassar os traumas inevitáveis do fim de um império e ocupar um lugar na Europa. Como reverso da medalha, que é o aumento da insegurança e é a desagregação da família.»
O momento político suscita-lhe uma análise cuidadosa:
«Hoje, as sondagens apontam para a vitória do Partido Socialista, só que ainda faltam quatro meses, e muita coisa pode acontecer. Mas qualquer maioria absoluta é preferível, independentemente da cor. Até porque Portugal já viu o desastre dos governos minoritários, que andaram a tentar trocar interesses uns com os outros e pensaram menos no país.»
Carlos Monjardino, o homem da Fundação Oriente e presidente da assembleia municipal de Cascais, diz que não vai discorrer sobre um período de tempo parecido com dez anos, que era a questão que lhe púnhamos para atear o diálogo, «porque isso até parece uma armadilha, coincide exactamente com os dez anos de mandato de Cavaco Silva». Prefere balizar a sua tomada de vistas desde a adesão à União Europeia. Textual:
«Não vejo que tenha sido aproveitada a oportunidade que tivemos com a entrada na União. Devia ter-se repensado o país em termos de prioridades, porque era uma adesão necessária e obrigatória. Houve o que eu chamo uma certa navegação à vista. E depois, os períodos eleitorais obrigam sempre a determinado tipo de coisas — como as estradas e auto-estradas, as pontes, o Centro Cultural de Belém — a que assistimos. Dou a devida importância a essas coisas mas, se as pesarmos numa balança, não são as prioridades de que o país precisa. O que está antes? O bem-estar social das pessoas: educação, saúde, cultura. Temos um défice cultural muito grande para tentarmos chegar ao nível dos outros países da Comunidade Europeia. E são auto-estradas para sítios estranhíssimos. A mim espanta-me que num país que se quer turístico, que quer melhorar o desordenamento do Algarve e minorar o desemprego que a região sente nas épocas baixas, não haja uma auto-estrada para o Sul. E, ainda por cima, o primeiro-ministro é algarvio!»
Problemas que se agudizaram? Os correspondentes a uma recessão marcada pelogrande desemprego.
«O exemplo que conheço melhor», aponta Monjardino, «é o da crise da agricultura no Alentejo. No concelho de Cascais temos todos os anos uma invasão de umas largas dezenas de pessoas que vêm do Alentejo, que largam os campos porque não têm condições para a agricultura. Não se devia retirar essas pessoas dos seus sítios, porque elas não sabem fazer outra coisa senão cultivar. Hoje diz-se-lhes para não o fazerem porque não compensa, mas não se lhes proporcionou alternativas, e socialmente são postas de parte. Isto contrariamente até aos exemplos de outros países europeus que têm agriculturas deficitárias e as mantêm com subvenções para as pessoas poderem fazer aquilo que sabem.»
Carlos Monjardino, quando se fala de qualidade de vida, é rápido a matizar: obviamente que se sentiu um aumento desse ítem, mas ele receia que seja algo de temporário, por desacompanhado das reformas estruturais de que o país necessitava.
«Arriscamo-nos a curto prazo a ser um país de serviços, de turismo — temos sol e praias óptimas. Só que, em vez de haver uma Europa a duas velocidades, parece haver a três ou a quatro, e nós estamos obviamente na segunda, se não mesmo a caminho da terceira. Faltou fazer as reformas para podermos diminuir a diferença.»
Ricos cada vez mais ricos, pobres cada vez mais pobres. Aumento do desemprego. E um nutrido cortejo de problemas sociais: maior criminalidade, toxicodependência, prostituição infantil («Vísivel mesmo em Cascais?» Pois claro que visível!). Mas, enfim, vive-se hoje «de uma forma mais próxima da realidade do que antes do 25 de Abril», o que foi um ganho; e acabou-se o obscurantismo político que tapou os olhos a várias gerações, outro ganho.
Ó ESCOLAS, SEMEAI!
É Monjardino que nos leva para o tema da nova geração. Ainda de viva voz:
«Os jovens deste país têm um futuro extremamente complicado. Há uma crise de valores, e na média-baixa burguesia uma grande falta de capacidade de falar com os filhos. Até porque a média-baixa burguesia não conhece os problemas dos filhos, que não são certamente os que ela teve — droga, sida.»
E Monjardino pai?
«A minha situação, a minha relação, são diferentes. Sou claramente um privilegiado, com o acesso à educação que tive, e passei muitos anos fora daqui, de forma que os pais dos amigos dos meus filhos devem achar que sou um sujeito vindo talvez de Marte, pelas conversas que tenho com os meus filhos e eles não têm. Há sempre uma boa altura para conversar, nem que seja no carro. Mas não penso que esta geração esteja perdida, o que vai acontecer é um acerto em termos de reforma educativa. Tem de haver maior informação, tem que se perceber os avanços tecnológicos e que o acesso a eles vai proporcionar outras vantagens que as gerações anteriores não tiveram. Por exemplo, o CD-ROM permite com uma simples cassete — claro, a quem tem computador — fazer os trabalhos escolares vendo e ouvindo ao mesmo tempo, que são óptimas maneiras de fixar.»
A nova geração, opina Ninó Andrade, «não tem noção de nada», e a coisa é simples de entender se nos lembrarmos de que «o pai e a mãe, quando não o filho mais velho, são obrigados a trabalhar, o que leva à desagregação da família. E os pais, em vez de pedirem compreensão, preferem dar automaticamente para não se incomodarem. Muitas vezes coisas que não têm capacidade de manter — carros, motas e assim.»
Ao arrepio desta forma de estar na vida, Rita Brito, 32 anos, conta-nos da filha de 12, Sara, «que é o retrato de uma geração» na qual se notaria «um regresso ao puritanismo quanto à droga e ao sexo.»
«A minha educação é linear: proíbo-lhe coisas básicas para ela, ao transgredir, não o fazer com coisas graves. Para a Sara, mentir já é uma transgressão deste tamanho.»
Mundo, mundo, vasto mundo, este da educação. Uma mãe-professora queixa-se-nos das «escolas superlotadas» e dos «professores sem preparação pedagógica e didáctica». Diogo Coutinho, aluno do 4.° ano de Engenharia Naval, não hesita em pôr a educação, ao lado da poluição, como um dos maiores «cancros» modernos. Há educação e educação, claro está, e há quem se prepare para parar e voltar a pensar tudo muito bem pensado. Será o caso de Pedro Figueiredo, 4.° ano de Gestão (e presidente da JSD da Parede), que confessou à VISÃO:
«Acho que era importante uma melhor educação: estou no 4.° ano e ainda não aprendi nada.»
O problema entrevisto das arribas brumosas sobre a Lagoa das Sete Cidades, ilha de São Miguel, é absolutamente outro, como se se desconversasse em tema tão essencial. Lança José Vieira, jardineiro e plantador de tabaco, pai de seis filhos:
«Todos eles estudaram, ou vão estudar, só até ao 9.° ano. O que eu ganho não dá para os mandar para a cidade (Ponta Delgada), e afinal os cursos também não ensinam assim tanto. E nem sequer dão mais dinheiro, que não há empregos para eles, para os que tiram os cursos.»
Vieira barricou-se na ruralidade. «Os da cidade», diz ele, «estão enganados, são mais crentes, dá-se-lhes qualquer coisa e eles acreditam.» Aos filhos, para crescerem direitinhos, alimentou-os a leite de vaca e pão de milho.
O DESCONCERTO DOS TEMPOS
A verdade é que nos tocou viver uma era como outra ainda não houve: difícil, estranha, ao avesso do que se lia nos livros ou se ouvia contar aos mais velhos. Os portugueses zangados não lhe escapam nem que fujam para uma ilha no meio do mar. Quer o leitor saber o que aflige Nuno Dinis, 23 anos, ex-empacotador de revistas numa distribuidora, ex-membro da JSD (ele é que diz, «por causa das festas»), habitante do Bairro da Cruz Vermelha, entre o Lumiar e a Musgueira, onde a torneira da Companhia não deita nem nunca deitará libras de ouro? Que está desiludidíssimo da vida e muito em especial com o PSD, ao ponto de ameaçar ir votar «para os gajos saírem do poleiro», que é uma imagem que também se leu mais lá para trás num parágrafo beirão. Um Nuno topa-a-tudo pelo menos deve movimentar-se à vontade nestas ruas. Ilusão! Ele agarra o braço do repórter para exclamar:
«Um gajo vai para qualquer lado curtir e vem de lá todo inchado.»
José Augusto Ramalheira, 50 anos, sem-abrigo, não é bem piteireiro nem borracholas nem o que lhe queiram chamar, mas quatro tacinhas de vinho todas as manhãs isso é que vão, pois «há uma certa necessidade corporal que tem de ser satisfeita».
Tirando o que, visto e ouvido o país num dia em que nem sequer estava particularmente em baixo, informa-se que a caló Lucinda, residente ao Prior Velho, Lisboa capital, mãe de uma Andreia toda bonitota que acaba de fazer um curso de «corte e costura», não gosta de brincar com coisas sérias e muito menos apreciou que a VISÃO, ou lá quem era, a fosse desinquietar na casa tipo barraca uma assoalhada em geral e todos juntos em particular:
«O mundo, sabem, vai acabar no ano 2000.»