Lara é uma rapariga de 15 anos que nasceu no corpo de um rapaz e que quer tornar-se bailarina. A questão de género é tratada de forma sublime nesta primeira longa-metragem do belga Lukas Dhont, premiada em Cannes, jovem realizador que já tinha dado nas vistas no formato curto, com uma nomeação para os Oscars. Girl é, de certa forma, um filme-tese, uma vez que defende claramente uma ideia, ilustrando-a com um exemplo concreto e paradigmático, inspirado num caso real.
O filme engrandece-se através da escolha dos seus elementos. Ao contar a angústia desta rapariga no corpo de um homem na adolescência, Dhont não entra por clichés nem preconceitos extremados, centra-se antes no mais civilizado dos mundos. Não há lugar para qualquer dúvida em relação à identificação de género. No filme, isso já está resolvido à partida, de forma clara e inequívoca, para o próprio espectador: Lara é muito bonita, extremamente feminina e, nós, assim como o pequeno mundo em sua volta, encaramo-la como uma jovem adolescente. A angústia é outra – o sofrimento de quem nasce no corpo errado, por equívoco dos deuses ou da Natureza.
Estamos na mais civilizada e progressista das sociedades. Há um acompanhamento exemplar do caso, em termos médicos e psicológicos, preparando a óbvia e inevitável mudança de sexo. O pai é inexcedível na forma como apoia a filha, chegando ao ponto de mudar de cidade só para que esta tenha melhor apoio médico e a possibilidade de entrar numa das mais famosas companhias de bailado. Até por parte dos colegas de escola não chega a haver aquela violência primária que pode esperar-se na adolescência (embora, de forma mais obtusa, a determinada altura, a violência, o bullying, se torne igualmente devastador).
Assim, na construção da sua tese, Dhont mostra-nos um caso extremado de aceitação social e acompanhamento pessoal, como quem quer expor como as coisas acontecem na melhor das hipóteses. E o que acontece, ainda assim, é um sofrimento atroz, centrado sobretudo na angústia provocada pela insuportável convivência com um sexo com o qual não se identifica e com a discriminação social que, por mais atenuada que seja, sempre subsiste. Tudo isto é filmado com mestria por Dhont, que opta por planos fechados, como se também a câmara perseguisse incessantemente Lara, criando um efeito de claustrofobia social e interior.
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Girl, o Sonho de Lara > De Lukas Dhont, com Victor Polster, Arieh Worthalter, Oliver Bodart > 109 minutos