Nem todos arriscam a aguarela, o capricho da água, o controlo difícil da mancha. É pena, dado o lirismo e a leveza desta técnica. Anija Seedler, alemã nascida em Leipzig, maneja-a com maestria e um toque de loucura caleidoscópica. Por mais literal que um desenho aparente ser, essa sensação é desarrumada por um par de olhos incandescentes, uma estranheza na pose, uma história adivinhada. Entre a galeria de retratos e o bestiário, ganha este último. Pássaros, répteis, mamíferos como gatos e ursos, arrumam-se num belíssimo cabinet de curiosités – como um Darwin naïve.
Em A História Maravilhosa de Peter Schlemil, a sua primeira exposição em Portugal, Anija traz as ilustrações originais feitas para um conto faustiano, escrito no século XIX por Adelbert von Chamisso: Peter Schlemil troca a sua sombra por uma bolsa de ouro infindável. Ostracizado, gasta as últimas moedas numas botas velhas, e transfigura-se em viajante. A moral desta história é ambígua, mas no traço de Seedler este crédulo é uma silhueta a tinta da china, algo devedora do pioneirismo do teatro de sombras de Lotte Reiniger (1899-1981): um pernalta de calções abalonados e chapéu alto que corre pelas páginas, ou que estaca, aturdido, rodeado por bichos, testemunhas e metáforas para o seu infortúnio.
Ao todo, são cerca de 20 ilustrações e colagens, duas delas em grande formato, já a caminharem para a pintura, um corpo de trabalho marcado por uma intensidade romântica. Os seres por si criados têm raiz, não tanto na ilustração contemporânea – quotidiana, humorada, pueril –, mas nas fábulas sofisticadas em que criaturas filosóficas nos colocam ao espelho.
A História Maravilhosa de Peter Schlemil > Goethe-Institut > Campo dos Mártires da Pátria, 37, Lisboa > T. 21 882 4510 > até 18 jul, seg-sex 8h-20h, sáb 9h-17h30