Isabel Abreu e Gonçalo Waddington estão de frente para o público: «Esta peça não foi aprovada. Esta peça é politicamente tendenciosa. Esta peça é imoral. Esta peça não vai ter sucesso. Esta peça não tem qualquer sentido de civilidade. Esta peça destina-se a um público muito reduzido. Esta peça não é aconselhável para famílias. Esta peça apresenta-se como uma comédia, mas provoca mais náusea do que riso», vão dizendo, à vez. Na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, o encenador Tiago Rodrigues estreia, durante o Alkantara Festival, o espetáculo que construiu a partir de relatórios de censores de teatro do Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, escritos entre 1933 e 1974, e tornados públicos há poucos anos: Três Dedos Abaixo do Joelho estará em cena de 29 de maio a 3 de junho. No palco, os dois atores dão voz às razões da censura e aos personagens das peças cortadas ou proibidas (de Aristófanes a Bernardo Santareno, de Oscar Wilde a Harold Pinter…).
«O teatro é mais perigoso, mais comunicativo, mais contagiante», justificou, na altura, um censor que proibia a encenação de Desejo sob os Ulmeiros, de Eugene O’Neill, depois de o filme, baseado no mesmo texto, ter sido autorizado a passar nas salas de cinema. Assim se redescobre o poder de uma palavra dita em cima de um palco, a importância do teatro numa sociedade. «Aqueles censores também estão a falar de nós, hoje. Este legado pode servir para percebermos o que ainda é importante no teatro. Na verdade, naqueles relatórios faziam-se apologias do poder do teatro. Pôr um espetáculo num palco pode ter consequências, era essa a ideia que estava por detrás daquelas justificações. Elas dizem-nos que o teatro é um motor de civilização, de pensamento, de liberdade», diz Tiago Rodrigues. E continua: «Tratava-se o teatro com temor, hoje trata-se com indiferença. Há um retrocesso histórico e, pela primeira vez, questiona-se o apoio do Estado às artes. Quando ouvimos o discurso político atual sobre as artes, percebemos que o raciocínio é muito semelhante: ‘Quantos, entre o público, perceberiam esta obra?’; ‘Que mal tem um teatro de onde se sai alegre?’» Numa «vingança humorística», Tiago transforma os censores em dramaturgos.
«Até onde nos pode salvar a linguagem?», questiona. «Fazer teatro, para mim, tem a ver com convencer-me de que fazer teatro é necessário. Se tivéssemos ido mais ao teatro, estaríamos melhor, seríamos uma sociedade mais saudável.»