Hans Portela, 33 anos, e a mulher, Nathalia, 30, nunca tinham visitado o Porto, mas talvez o facto de Hans ser filho de pai português, de Viseu, tenha pesado na decisão do casal de brasileiros de vir viver para o nosso país à procura de uma “melhor qualidade de vida”. Há pouco mais de um ano, puseram tudo o que tinham num contentor e atravessaram o Atlântico, com “a ideia de abrir um restaurante”. Para trás ficou São Paulo, onde nasceram e deixaram a família, e Miami, na Florida, Estados Unidos da América, onde passaram os últimos três anos a dirigir um restaurante mexicano. Foi no número 33 do Largo de São Domingos que encontraram o lugar ideal para abrir o Viva Creative Kitchen, em meados de março, uma “cozinha criativa e moderna a frio” porque a loja não tem extração de fumos, impossibilitando a existência de um fogão. Hans e Nathalia foram dos últimos a chegar a uma das zonas da cidade mais procuradas para novos negócios, entre lojas, hotéis e restaurantes, à boleia do aumento do turismo e da revitalização urbana no triângulo Rua Mouzinho da Silveira, Rua das Flores e Largo de São Domingos, entre a Estação de S. Bento e a Ribeira. O casal está satisfeito com a adesão nestes dois primeiros meses. E ainda mais contente ficou com o facto de o Largo de São Domingos ter passado a ser pedonal, na sequência das alterações de trânsito, desde o final de abril. Na carta – “com influências do mundo, das cozinhas asiática, mexicana e brasileira” –, o pão de fermentação natural, feito por Hans Portela todos os dias de manhã, acompanha o camembert fondue trufado com mel e alho. Prove-se a burrata injetada com redução de vinho do Porto balsâmico e figos, o tártaro de atum com abacate Hass, cebola roxa, cebolinhos e molho ponzu, o shakshouka (ovos escalfados em molho de tomate), as bowls e as saladas (o menu tem opções veganas, sem glúten e sem lactose) e remate-se a refeição com as sobremesas feitas por Nathalia.
Nos dois dias em que andámos a palmilhar as três ruas, estava fechado o Palácio das Artes, no antigo Mosteiro de S. Domingos e atual sede da Fundação da Juventude, mas há um bom motivo para o visitar. No dia 30 acabou de inaugurar Suite Vollard, exposição inédita de 100 gravuras desenhadas por Pablo Picasso, entre 1930 e 1937, pertença da Fundação Mapfre, numa parceria entre a Porto Taylor’s e o Museu e Igreja da Misericórdia do Porto. Mesmo em frente ao palácio, são bem mais antigas as peças que encontramos na sala-museu da Farmácia Moreno (1804), com fachada de Arte Nova. No primeiro andar, observam-se antigos misturadores, seringas, balanças, almofarizes, máquinas para encher pomadas, usados durante décadas no fabrico de medicamentos – há dois, o Doce Alívio (um laxante) e o Calicida Moreno (solução para calos e verrugas), que ainda são comercializados. O dono, o farmacêutico João Almeida, quer dinamizar o espaço museológico desta que é a segunda farmácia mais antiga do Porto e que recebe visitas de quem vai sabendo do espólio que lá se encontra.
A memória de outros tempos perpetuou-se (e ainda bem) no hotel ao lado, o A.S. 1829 Hotel, onde funcionou a antiga papelaria Araújo & Sobrinho, ou na Violet & Ginger que, desde 2014, ocupa o lugar da Drogaria Moura. Da mais antiga drogaria da cidade mantiveram-se os armários que arrumam peças de vestuário para mulher de várias marcas e, agora, também as de bebé (da Dot Baby). A loja de Vera Pinto Leite e de Rita Queiroz Ribeiro (que, entretanto, abriu no Chiado, em Lisboa), aposta em “peças exclusivas”, privilegiando as marcas portuguesas de roupa, acessórios e calçado. “Quando abrimos, a rua não tinha nada”, recorda Vera. “Hoje, os nossos clientes são metade estrangeiros, metade portugueses”, que tanto compram joalharia das portuguesas Sopro e Omnia, sapatos da Sensy, vestidos, tops e saias da Vintage Bazaar como roupa da espanhola Indy & Co ou da holandesa Scotch & Soda. Na porta ao lado, no final do ano passado, abriu a Mesh, loja de joalharia contemporânea, mas aguardam-se outras novidades, a avaliar pelas obras que se observam da rua. “Todas as semanas, há algo a abrir”, confirma Catarina, funcionária da Violet & Ginger.
Mercadores e ourives
A bióloga Joana Osswald lembra-se bem de como era a Rua das Flores, em 2012, quando, juntamente com a economista Joana Oliveira, abriu uma mercearia de produtos portugueses. “Nessa altura, a rua não era pedonal. À noite, era perigoso andar aqui, os clientes eram sobretudo moradores.” Sete anos depois, o cenário é bem diferente. Outrora conhecida como rua do ouro, devido à quantidade de ourivesarias que ali existiam – já lá iremos, mais adiante –, enche-se agora de gente, às compras ou em passeio, entre a Baixa da cidade, o Palácio da Bolsa e a Ribeira, já de olhos postos no rio Douro. À boleia desta movida, Joana Osswald adaptou o negócio, passando a Mercearia das Flores a funcionar como petiscaria. “Os clientes, na sua maioria, são estrangeiros que têm curiosidade pelas nossas tradições e maior poder de compra”, diz. A partir das 11h30, é um entra-e-sai de gente que se senta nas mesas de madeira, de olhos postos nos armários antigos, de onde saem os produtos também à prova. Entre os mais pedidos, estão o duo de conservas (filetes de cavala e petinga em azeite) e azeitonas, com pão tradicional (à segunda chega o de Vinhais, todos os dias há broa de Avintes e pão de Mirandela), os queijos – servidos com geleia de pimentos vermelhos, figo confitado, mel ou azeite biológico – e os vinhos nacionais.
Quase em frente, na Toranja, aberta há menos de um ano, há objetos de autor originais, que fogem aos comuns recuerdos, à venda na zona. “Dar a conhecer artistas portugueses”, diz Joana Gonçalves, a responsável pela loja, “é o objetivo da marca, nascida em Lisboa, com posters, almofadas, azulejos e cadernos, cujos desenhos podem ser submetidos no site”. Lá fora, os músicos misturam-se com malabaristas e ilustradores a vender postais e telas, nesta rua que é pedonal desde 2014, onde a arte urbana deu nova vida a dezenas de caixas de eletricidade com desenhos e expressões do Porto, como Bai no Batalha ou Oh mor, Isto não é para alapar.
Já passaram dois anos desde que os irmãos Joana, Raquel e Marco Pinheiro abriram o Mercador, num antigo armazém de atoalhados. “A falta de sítios onde se pudesse tomar um pequeno-almoço a qualquer hora”, conta Joana, motivou a abertura do café, que preservou o enorme armário e o balcão antigos. Na carta, a oferta cresceu, entretanto, para pratos de cozinha tradicional portuguesa – como o polvo, o ossobuco com risotto ou o bacalhau à Gomes de Sá –, e, daqui a dias, entram as massas frescas, os ovos benedict com cogumelos e as waffles com bacon. Também o Semea, que o chefe Vasco Coelho Santos abriu no verão do ano passado, está prestes a renovar a carta, depois de ter fechado uns dias para férias. A açorda de gambas do Algarve, a cavala marinada com molho verde, as lulas com miúdos e as batatas à portuguesa vão rivalizar com o bacalhau à Brás e a sanduíche aberta de borrego, sem esquecer a célebre rabanada com gelado.
As esplanadas de restaurantes e cafés, do Cantina 32 ao novo siciliano Mizzica, enchem-se com a chegada do bom tempo. O sossego é perturbado, porém, pelo barulho das obras de construção de novos hotéis, a somar aos muitos que já existem – o Porto Bay conta abrir, em julho, um hotel de cinco estrelas no Palácio dos Ferrazes (século XVI), com 66 quartos e suites, restaurante e piscina interior; a dois passos, ficará a nova pousada do Grupo Pestana, com 90 quartos (início de 2020) e, quase em frente desta, o Flores 77, um edifício com 13 apartamentos de luxo.
Novidades que parecem agradar aos comerciantes. Pelo menos, assim pensa Cristina Lopes, dona de uma das ourivesarias mais antigas do Porto, a Neves & Filha (1850), com chão de carvalho e de sucupira e tetos pintados a ouro. “Tivemos de nos adaptar, tenho multibanco e falo línguas [tirou um curso de Letras, antes de ir para ali trabalhar com o pai, com 20 e poucos anos]”, conta a proprietária, 59 anos. Entre peças de ouro, prata e filigrana, é o coração do Porto, de D. Pedro IV, e não o de Viana (ai de quem lhe diga uma coisa dessas), o mais vendido, diz, enquanto mostra o livro de honra, com depoimentos dos quatro cantos do mundo. Na Rua das Flores, contam-se pelos dedos de uma mão as ourivesarias que se mantêm – em tempos, eram dezenas –, enquanto outras surgem dedicadas à joalharia contemporânea, como a Elements Contemporany Jewellery. A marca de luxo dos irmãos Marco e Nuno dos Santos abriu em janeiro passado, no lugar da antiga Ourivesaria das Flores (de 1920), e, no final de 2017, a Eugénio Campos inaugurava ali a sua primeira loja de rua.
O cheiro dos sabonetes e das colónias leva-nos à Claus Porto, num edifício de três andares que a Ach. Brito abriu vai para três anos. “A loja superou todas as nossas expectativas, desde o primeiro dia”, salienta Maria João Mendes, relações públicas da marca, atraindo norte-americanos, coreanos, ingleses e franceses, mas também “cada vez mais portugueses”. Quem quiser saborear vinhos portugueses, basta entrar na nova sala de provas que a ViniPortugal abriu em fevereiro. Para recuar no tempo, sugere-se a Chaminé da Mota, a resistente livraria alfarrabista com um milhão de livros e uma coleção de caixas de música com 200 anos.
Em boa hora, o Museu e Igreja da Misericórdia do Porto abriu portas, no verão de 2015. Só em 2018, 57 mil pessoas visitaram a igreja barroca (século XVI) e o imenso espólio da Santa Casa da Misericórdia do Porto, em que se incluem obras de Josefa de Óbidos, Domingos Sequeira e o painel do século XVI Fons Vitae (atribuído a Colijn de Coter). A escultura de Rui Chafes O Meu Sangue é o Vosso Sangue, que atravessa a parede para o exterior, é fotografada milhares de vezes. A localização, privilegiada, terá também contribuído para o facto de ser o único português nomeado para o Museu Europeu do Ano EMYA 2019. A ver vamos se arrecada o prémio, divulgado no dia 25, em Saravejo, na Bósnia e Herzegovina.
Entre o antigo e o moderno
É um outro museu aquele que se verá, por baixo da Rua Mouzinho da Silveira: a Galeria Subterrânea do Rio da Vila, com vestígios da época romana, em breve visitável a partir da Estação de Metro de São Bento. O rio corre quatro metros abaixo da rua, dentro de um túnel construído há mais de 140 anos, mas à superfície apenas as obras de construção da tal galeria se notam. E que, por ora, impedem que se veja a montra da Burel Mountain Originals, a loja da Burel Factory, aberta no final de 2015, para mostrar o design português aplicado ao tecido feito a partir da lã de ovelha bordaleira, da serra da Estrela. Nada que nos impeça de nos deslumbrarmos com o que de melhor se faz com o burel: das mantas leves para os piqueniques ao novo banco empilhável Have a Seat, do designer Rui Tomás. O mais recente vizinho da Burel, desde o final do ano passado, é a Son of a Gun, com marcas de streetwear como a Patagónia e a Billionaire Boys Club.
Rua acima, cruzamo-nos com outras lojas, como a Typographia, marca de t-shirts de algodão, com estampados criativos, ou a nova Clérigos In (abriu há dois meses), de marcas de óculos como a italiana Retrosuperfuture e a espanhola Etnia Barcelona. Rua abaixo, entre edifícios recuperados, há novos restaurantes e alojamentos locais, lojas de conservas e casas de antiguidades, como a Vandoma e a Faria. Logo de manhã, à quase centenária A Sementeira (1933) chegam alfaces, repolhos e pimentos para plantar na horta, bolbos de begónias e jarros para o jardim.
Duas portas ao lado, no número 166, fica o Cantinho do Avillez, onde o chefe José Avillez promete novidades: o regresso do gaspacho de cerejas do Fundão, o hambúrguer de picanha, a moqueca de corvina e o tártaro de polvo. Mesmo em frente, no Tapisco, de Henrique Sá Pessoa, outro chefe Estrela Michelin, são o polvo à lagareiro com batatinha assada e o tártaro de atum com abacate e ovas de wasabi os best sellers do restaurante, aberto no verão do ano passado. Na cozinha de autor, o Artesão Bistrô, do chefe João Lima, foi o último a chegar à rua, em fevereiro, para quem procura “uma refeição mais intimista, à base das partilhas”. Mas se a sua cozinha é vincadamente portuguesa – há bacalhau e migas, vitela mirandesa ou cabrito transmontano –, já a carta do Bartolomeu Bistrô, no novo Torel 1884 Suites & Apartments, é de influência francesa, com campagne (mistura de carnes de porco com alperce) e pissaladière (tarte da região de Nice, Sul de França) na ementa. Quem quiser passar ali a noite encontra neste edifício do século XIX, com 12 quartos, uma bonita viagem pela epopeia dos Descobrimentos.
À hora do lanche, ou do almoço, valerá a pena subir ao primeiro andar da Casa das Associações e experimentar a cozinha que Adriana Assunção serve, há dois meses, no Bonina. No dia em que por lá passámos, havia focaccia com curgete marinada, caril de vegetais, kombucha (de limonete ou flor de sabugueiro), húmus (de caril, feijão-preto ou batata-doce), compotas e bolos. “Não é bem um restaurante, é um café com refeições saudáveis”, resume. Adriana chama-lhe “espaço de cultivo” porque, além de promover a alimentação saudável, é aberto a artistas que queiram mostrar o seu trabalho, das artes plásticas à música. Um lugar tranquilo, simples, simpático, no meio da azáfama.
SIGA O ROTEIRO
RUA MOUZINHO DA SILVEIRA
83 Burel Mountain Originals > T. 91 5174 710 > seg-sáb 10h-20h, dom 11h-19h
89 Son of a Gun > T. 22 110 8440 > seg-sáb 10h30-19h30
115 Pizzaria Luzzo > T. 22 110 0159 > seg-qui, dom 12h-15h, 19h-22h30, sex-sáb 12h-15h, 19h30-23h
129 Wok to Walk > seg-dom 11h-24h
165 Tapisco > T. 22 208 0783 > seg-dom 12h-24h
166 Cantinho do Avillez > T. 22 322 7879 > seg-sex 12h30–15h, 19h-24h
178 A Sementeira > T. 22 200 7578 > seg-sex 9h-12h30, 14h30–19h, sáb 9h-12h30
196 Starbucks > seg–qui 8h30-23h, sex-sáb 8h30-1h, dom 9h-23h
218 Artesão Bistrô > T. 91 051 8940 > ter-dom 12h-15h, 19h-23h
228 Bartolomeu Bistrô > Torel 1884 Suites & Apartments > T. 22 600 1783 > seg-dom 12h30-23h
234 Bonina > Piso 1 > T. 91 452 3081 > seg-sex 10h-18h, sáb 10h-17h
253 Typographia > seg-sex 10h30-20h30, sáb-dom 10h30-21h
259 Clérigos In > 96 133 6776 > seg–sáb 10h-13h, 14h-19h
RUA DAS FLORES
8 ViniPortugal > T. 22 332 3072 > seg-dom 11h-19h
15 Museu e Igreja da Misericórdia do Porto > T. 22 090 6960 > seg-dom 10h-18h30 > €5, famílias €16
18 Chaminé da Mota > T. 22 200 5380 > seg-sex 9h30-12h30, 14h30-19h, sáb 9h30–13h
22 Claus Porto > T. 91 4290 359 > seg-dom 10h-20h
32 Cantina 32 > T. 22 203 9069 > seg-sáb 12h30-15h, 18h30-22h30
51 Mizzica – Sapori di Sicilia > T. 93 499 5884 > seg, qua-dom 12h-21h
109 Toranja > T. 22 208 1232 > seg-dom 10h-21h30
110 Mercearia das Flores > T. 22 208 3232 > seg-sáb 11h30–22h, dom 11h30-20h
115 Ourivesaria Neves & Filha > T. 22 200 0233 > seg-sex 11h-12h30, 15h-19h, sáb 11h-13h
141 Eugénio Campos Jewels > T. 91 156 7340 > seg-sáb 10h-19h
180 Mercador Café > T. 22 332 3041 > seg-sáb 9h-20h
249 Elements Contemporany Jewellery >T. 22 319 2031 > seg-sáb 10h-19h
LARGO DE SÃO DOMINGOS
33 Viva Creative Kitchen > T. 22 208 2126 > ter 18h-22h30, qua-dom 12h-15h, 18h-22h30
42 Farmácia Moreno > T. 22 200 3545 > visitas sala-museu: seg-sex 11h, 16h > grátis
18 DOP > T. 22 201 4313 / 91 001 4041 > seg 19h-22h30, ter-sáb 12h30-15h30, 19h-22h30
19 Palácio das Artes > T. 22 339 3530 > seg-dom 9h30-19h
78 Restaurante LSD > seg-dom 12h-24h
99 Violet & Ginger > T. 91 677 4787 > dom-qui 12h-20h, sex-sáb 10h-21h