Talvez se possa dizer que, entre outros, o grande drama dos replicantes do célebre filme Blade Runner, de Ridley Scott, com argumento de Philip K. Dick, é não terem chegado à escrita. Sim, viram coisas que a alma humana dificilmente poderá imaginar. Naves, raios e chamas, aquém e além da cintura de Oríon. Porém, nada restará; só o lamento. É a célebre frase “como uma lágrima na chuva”, que condena um clone ao total esquecimento. Talvez se possa dizer que, entre outros, o grande apelo do novo livro de Olivier Rolin está na resposta que lança àquele sentimento cinematográfico. O que fazer de uma vida cheia? Deixá-la escoar-se ou erguer-lhe um monumento? A resposta do escritor é inequívoca – viver para contar.
Peregrinação não é um livro de memórias, género a que se mostra avesso. Também não é um diário, porque a cronologia é estilhaçada. Peregrinação constrói-se numa sedutora desordem narrativa. Munido dos cadernos que preencheu ao correr de três décadas, Rolin deixa a memória voar. Bem ao estilo do acaso objetivo, associa fragmentos de vida e pedaços do mundo (e ele é um homem de muitas partidas, incansável viajante e curioso), mas nada é fortuito ou difuso. Escrever é ativar o ato de lembrar, a vontade de reconstituir o que se viveu com o realismo que for possível. Daí a minúcia de Rolin, as suas descrições, que rivalizam com o exotismo das geografias que habitou, pois nunca foi turista, e situações que presenciou.
Sem guião nem plano, Peregrinação é uma daquelas obras raras e irrepetíveis que se constroem aos olhos do leitor, na procura do seu género literário e na incessante demanda pessoal do autor. Olivier Rolin regressa ao mundo, agora através da memória, dos Açores a Cabul, da América do Sul à China, de África à Europa, em busca de si próprio e do sentido da escrita. Felizmente para o leitor, as suas lágrimas caíram em bom papel.