É um daqueles artistas difíceis de arrumar numa única gaveta: pintor, fotógrafo, designer, escritor, poeta… Subjacente a tudo, pulsa um desejo de experimentar, uma “liberdade criativa” que celebra o caos e as aparições da vida. Não é de estranhar que a primeira fotografia na monografia dedicada a Fernando Lemos (nascido em 1926 em Lisboa, cidadão do Brasil desde os 27 anos) seja o retrato de um amigo: José-Augusto França, homem entrincheirado no casaco, vigiando uma quimera de Notre-Dame de Paris (1951). Recorda Filomena Serra, autora do texto deste volume, que o crítico foi dos primeiros a escrever sobre a obra do fotógrafo, uma amizade iniciada por volta de 1949, quando Lemos se tornou “frequentador assíduo” da I Exposição Surrealista, realizada no atelier de António Pedro e António Dacosta. “Os amigos foram-lhe tão necessários como ‘o entrar numa casa só pela necessidade de sair por ela’.”, lê-se.
Grande parte deste livro irrepreensível é habitada por essas amizades: um retrato íntimo do Portugal inconformista, entre 1949 e 1952, captado como uma “afronta aos conservadores de plantão”. Lemos fotografou Agostinho da Silva (semblante duro, longe do sábio idoso que recordamos), Cesariny engravatado, Cardoso Pires sorridente e simples como um marinheiro, Sophia hierática ou desconhecida, Fernando Azevedo e Vespeira como cartas fora do baralho… Há “retratos múltiplos” com sobreposições de rostos, convivências insólitas com objetos, molduras a enquadrar corpos, fumos oníricos – uma “fotografia como início de uma busca pelo estranho”. Este portefólio, com dez imagens inéditas, vai além da alegoria e do surrealismo: há aqui a luz arquitetónica do Japão ou do Cairo, cenas melancólicas em Moledo, retratos de ofícios ancestrais, figuras brasileiras (como Hilda Hilst), nus fantasmáticos. Fernando Lemos? “Ele é, também, fotografia.”
Fernando Lemos (Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 132 págs., €19) é o quarto volume da série Ph., coleção de monografias dedicadas a grandes fotógrafos portugueses, dirigida pelo também fotógrafo Cláudio Garrudo.