Há uma fotografia, das várias tiradas por Patti Smith que pontuam este volume (devorável numa tarde mas que fica a reverberar nos dias seguintes), em que se vê a sua escrivaninha em Nova Iorque: um lápis, a imagem de uma cabana na neve, um caderno manuscrito preenchido com letra angulosa. Pistas que ecoam nas fotografias finais: as das páginas escritas numa viagem de comboio a Paris a caminho de um encontro com o seu editor, rematadas pela imagem da lápide de Albert Camus (em cujo quarto de Lourmarin a artista dormirá, a convite da filha do autor; experiência reflexiva que narra no capítulo Um Sonho não É um Sonho).
Mais pistas. No meio, explora-se o “mistério recorrente e invisível” da inspiração, da musa que “pretende que lhe seja dada vida”, do processo de criação – o verdadeiro tema. Smith usa, aqui, os formatos da ficção, do ensaio e das notas biográficas, para responder à pergunta “porque escrevemos?”. Concluirá: “Porque não nos podemos limitar a viver.”
Mas viver é o gatilho. A artista evoca ícones literários, visita campas de autores favoritos, encontra sinais em sítios improváveis, como a televisão de um hotel (aí assistirá, impressionada, ao triunfo de uma patinadora de gelo russa), o reencontro com um livro da filósofa Simone Weil ou a descoberta da palavra “devouement” num cemitério do Sul de França, em Sète, que inspirou o título, Devoção.
É toda uma peregrinação inquisitiva, deambulante e disponível (uma devoção) transfigurada neste livro-laboratório: abre com a descrição das circunstâncias iniciais da escrita (Como Funciona a Mente); segue para o conto Devoção (sobre Eugénia, jovem patinadora que pratica a sua arte num lago isolado – sem público – e que é seduzida por Aleksandr, mentor mais velho, que se angustia com o destino das suas preciosas coleções) e termina com uma reflexão, pessoal e fascinante, sobre o sentido literário.
Devoção (Quetzal, 144 págs., €15,50), originalmente publicado há dois anos e traduzido agora pelo poeta Helder Moura Pereira, é editado em Portugal a seguir aos seus livros de pendor biográfico: Apenas Miúdos (2011) e M Train (2016).