As histórias de sociedades desagregadas por criaturas que inventam as suas próprias regras constituem um microgénero com fascínio perene, visível em clássicos como O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, e O Senhor das Moscas, de William Golding.
O madrileno Andrés Barba, eleito pela Granta como um dos melhores novos escritores de língua espanhola, em 2010, desloca a premissa perturbadora para um cenário menos épico, mais antropológico, em República Luminosa. Há ecos das problemáticas contemporâneas (os refugiados, o tráfico humano, a mendicidade aceite, logo “invisível”), nesta sua versão da luta entre regras civilizacionais e pulsões instintivas: a erupção de 32 miúdos “selvagens”, com idades entre os nove e os 13 anos, sem origem conhecida nem hierarquias, praticantes de uma “língua incompreensível” (apenas apreendida por uma menina da terra no seu diário), faz tremer San Cristobal, cidade provinciana incrustada numa floresta poderosa – e a sombria metáfora estende, logo aí, os compridos ramos.
Descrito com intensidade e grande domínio dos ritmos narrativos, o sismo sociológico terá um desfecho violento, revisitado duas décadas depois por um narrador implicado: um funcionário dos Assuntos Sociais, assombrado pelos alçapões da filosofia moral e pelos presságios – a cadela que atropelou à sua chegada a San Cristobal anuncia o horror, provocado pelo medo dos adultos face às crianças livres, descritas como pássaros, pequenos veados, criaturas que tinham “brotado” do rio. A epígrafe, de Paul Gauguin, não é inocente: “Eu sou duas coisas que não podem ser ridículas: um selvagem e uma criança.”
República Luminosa (Elsinore, 174 págs., €15,98) é o terceiro livro traduzido em Portugal de Andrés Barba, depois de As Mãos Pequenas (Minotauro, 2010) e Na Presença de Um Palhaço (Elsinore, 2015).